14 de fevereiro de 2014

Aconteceu Num Sábado a Noite



                Era sábado a noite, um sábado qualquer na cidade que não dormia nunca. O primeiro garoto era negro, nascido pobre, trabalhara desde cedo no que podia, comia o pão que o diabo amassou, não conhecia o pai. O segundo era branco, loiro e de olhos azuis, o pai era um influente empresário.

                O primeiro descia o morro sempre que podia pra ir à praia. Gostava de assistir ao futevôlei na areia, as ondas quebrando na beira do mar, de vez em quando até entrava na água, mas gostava mesmo era da vista daquelas vidas que, sonhava ele, podiam ter sido a sua. O segundo também adorava a praia, ir com os amigos, beber umas cervejas, azarar, surfar de vez em quando.

                O primeiro gostava de desenhar, muitos chamavam pichação, para ele era arte, de rua, sempre a rua. O segundo não gostava, gastava, e era isso. O primeiro não usara drogas nunca, era limpo, mesmo com todas as possibilidades ao redor. O segundo perdia as contas do que já havia feito e visto.

                E veio o sábado a noite, o primeiro sentia fome, e andava pela rua, a mãe não tinha emprego, os irmãos estavam perdidos, por uma razão ou outra, e ele seguia com a arma no bolso da jaqueta de moletom. O segundo voava pelas avenidas no seu carro, um fardo de cervejas adornava o assento do carona. 110km ... 120km ... as luzes riscavam o para brisas como pequenas explosões de êxtase.

                O primeiro gritou, a mulher gritou, e por fim a polícia gritou. O segundo gritava extravasando a futilidade e inutilidade daquela existência. A polícia correu atrás do primeiro, e em um beco sem saída viu o garoto encurralado. Ele levantou as mãos, com calma, e um tornozelo vilão o fez tropeçar. O segundo acelerava cada vez mais o seu carro.

                BANG, o primeiro caía lentamente no calçamento com uma bala no peito. BANG o segundo atingia rapidamente um inocente pedestre em uma faixa de segurança. O primeiro nunca mais desenharia, nem contemplaria o mar calmo e macio. O segundo gozaria da influência do pai e do capital.

                 Um deles era, o outro tinha. E entre o ser e o ter não se desenham tons de cinza. Há uma fissura, quase intransponível. A vida do primeiro era regida por leis básicas e inquebrantáveis, a do segundo era regida apenas pela própria vontade. E nesses sábados a noite, domingos a tarde e segundas pela manhã, muitos outros BANGs eram escutados pela cidade. E através da madrugada o som se espalhava com o vento forte pelas ruas. Carregava a certeza de que mais uma vez a justiça não enxergara o que deveria ter enxergado. Maldito som esse que acabava com razão, palavras e sonhos. BANG, era o que espalhava a notícia de que há algo de muito errado nos nossos valores. BANG, a tristeza agora tinha um som.