16 de outubro de 2013

A Beleza Está Nos Olhos de Quem Cria

  
             – Só preciso de uma garrafa de vodka e uma companhia pra conversa ao longo da madrugada fria...
            É assim que começa. Início da noite. No bar já toca, há mais de cinco minutos, um álbum dos Smiths e isso deixa Pedro totalmente deprimido.
             The Smiths. Que bandinha bem boa... – diz ele ao ver o próprio reflexo na superfície do copo arredondado – tem momentos da vida da gente que só Morrissey entenderia ...
             Como assim? – pergunta Bernanrdo, dando uma risada por conta do comentário do amigo.
           Oras como assim! Quero dizer que tem alguns poetas que conseguem entender no fundo algumas emoções que nós sentimos, eles interpretam aquilo, preveem o sentimento, saca?
             Eu acho que tu já bebeu demais cara... – decreta Bernardo, com um ar meio superior.
           Não não não! Isso não tem nada a ver com bebida ou cigarro ou café. Tudo bem, eu admito que algumas substâncias lubrificam alguns recessos da nossa mente, mas no meu caso é pura e simples constatação. – enquanto fala isso, Pedro levanta a mão em busca de algum garçom.
            Quem atende é uma garçonete com cabelos ruivos presos em um coque bastante justo na parte superior da cabeça.
             Mais uma Polar, guris? – inquire ela, enquanto pega a garrafa vazia de cima da mesa.
             Por favor, Ju... – pede Pedro com uma expressão de alegria – a mais gelada que tiver!
           No momento em que ela vai em direção à parte de dentro do bar, Pedro acende um cigarro com o final do anterior, da uma tragada longa e se volta ao amigo.
            Pois bem, como eu ia dizendo. A verdade é que o poeta tem uma alma extremamente sensível às diferentes mudanças ao redor. É isso que faz dele descritivo de forma exagerada, sofredor de forma extremamente dolorida, PORÉM... – Pedro corta a frase de surpresa, leva o cigarro mais uma vez a boca, da uma tragada e exala a fumaça pelo nariz.
           Nesse momento Bernardo ri consigo, é clássico ao amigo dar esse tom dramático aos seus discursos regados à cerveja. Além disso, traga o cigarro como se dele retirasse sua essência vital, como se estivesse em um longo mergulho, e cada tragada representasse o momento que vai à superfície em busca de ar.
          PORÉM... – repete Pedro - ... ele precisa também de uma inspiração. Aí está, a característica ambígua do poeta, ao mesmo tempo que deve sentir sem ter vivido, deve buscar viver aquilo que sente. É quase como se ele fosse um náufrago no meio do oceano, ele precisa da condição de náufrago sofredor pra continuar fazendo a arte dele, porém é preciso que esse náufrago tenha algo de concreto pra que essa arte seja alcançada. Como um bote... isso... um bote. O poeta é um náufrago no mar da vida, navegando em um bote, ao mesmo tempo em que sua situação é de um sofrimento sem fim, ele precisa ter a sensação de que um dia, em algum momento, a situação dele pode mudar, o fio de prata da esperança, ou a cenoura na frente do burro, como tu preferir. – conclui Pedro, com tom professoral, como se tivesse acabado de fazer uma descoberta incrível no campo da física quântica.
           Hmmm, ok. Suponhamos então que em toda poesia de amor, o que tá ali no papel é o que? Um desejo incontido por uma pessoa linda e inalcançável? – pergunta Bernardo, entrando no clima da discussão.
             Aí é que está o ponto! – exclama Pedro, dando mais uma tragada no cigarro e exalando a fumaça pelas narinas – Talvez a parte do inalcançável seja verdade, mas a parte do linda, aí se encontra a maior construção do romantismo na história do mundo. A beleza da pessoa desejada é, em última instância, ilusória. Fumaça e espelhos, na mente de uma pessoa que vive entre dois mundos, o real e triste e o idílico e perfeito.  São as sombras na parede da caverna, as sombras são uma ilusão, mas uma ilusão causada por algo concreto, vivo e existente. A beleza são essas sombras.
          Isso significa que não existe beleza? – pergunta Bernardo, conrrigindo-se rapidamente – Ou melhor, não existe beleza unânime?
          Tecnicamente o que existe é a idealização, é aí que eu chego no meu ponto. Todas essas descrições da literatura, desde a Capitu do Machado até a Sybil Vane do Oscar Wilde. Pura criação da mente absolutamente em transe de pessoas comuns. Talvez os olhos de cigana da Capitu fossem sem graça, as faces alvas da Sybil completamente esquecíveis. Quando tu vens e me pergunta se todas as “mocinhas” do romantismo são os avatares de Afrodite na terra eu te respondo. Obviamente que não! Elas são os avatares da mente completamente arrebatada de seus seguidores.
           A beleza está nos olhos de quem vê... – cita Bernardo, dando uma risada.
         NÃO! Não me venha com clichês baratos, talvez essa frase esteja certa, mas o meu ponto não é esse... – se irrita Pedro, a despeito da frase de Bernardo ter sido uma brincadeira -  o que eu quero dizer é simples, é que toda a beleza e toda a perfeição que o romantismo criou não passam de um resultado ilusório, são fruto do hipnotismo, da fixação de homens por mulheres, por outros homens, por animais, pelo mundo...
             Cara, essa forma de ver as coisas é meio deprimente...
          The Smiths me deprime... – comenta Pedro, dá uma bicada no seu copo de cerveja e mais uma tragada em seu cigarro.
           Um casal se aproxima dos dois amigos sentados na mesa de madeira do bar, todos se cumprimentam com grande entusiasmo, puxam um par de cadeiras, ao mesmo tempo que Pedro levanta a mão em direção a algum garçom. A garçonete do cabelo ruivo novamente responde ao chamado.
             Vê mais duas garrafas, pelo visto a plateia aumentou e a noite mal começou...

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