4 de novembro de 2012

Epílogo



            O sol era intenso no meio da manhã de uma quarta-feira. A pequena vila ao sul da França se mantinha calma, apenas alguns passantes se movimentavam languidamente pelas ruas em direção ao seu destino. O ônibus descarrega na rodoviária o número habitual de viajantes, dentre eles um casal bastante original. A mulher loira, por volta de 25 anos de idade, desce primeiro, olhando para os lados com uma curiosidade voraz. Logo atrás um jovem moreno, com uma barba rala que tenta, mas não consegue, lhe conferir mais idade. carrega uma mochila e um ar de complacência.
***
            No mesmo momento em que o ônibus estaciona na rodoviária, um homem na casa dos 65 anos de idade, apoiado em sua bengala com o castão adornado em prata. O homem possui uma barba mesclando o branco com resquícios do castanho claro dos cabelos. Usa calça e camisa brancas e, na cabeça, um chapéu panamá com uma fita bordô. Ele entra calmamente pela porta de madeira de lei de uma pequena livraria. Na vidraça ao lado pode-se ler o nome “Desolation Peak Librairie”.
***
            O homem tira um pouco de café da cafeteira e serve em uma xícara, logo após grita a plenos pulmões:
            - Isabelle voulez-vous un café?
            - Oui, ma chère! - responde a mulher
            Ele serve a segunda xícara de café e a leva para a mulher. É uma morena de olhos azuis. Não é necessariamente bela, possui um nariz aquilino e as expressões são bem marcadas. A idade também já lhe tira um pouco do esplendor, porém possui um sorriso gracioso além de lábios grossos que lhe dão um certo sex appeal.
            Ela se encontra arrumando alguns livros em meio às estantes espalhadas pelas paredes da biblioteca. Recebe a taça com um sorriso e o homem se dirige à sua escrivaninha que fica na parte dos fundos da loja. Alguns minutos se passam até que um casal entra pela porta fazendo soar o antigo sininho que sinaliza movimento.
            O mesmo casal que havia descido do ônibus mais cedo. James sentiu uma certa familiaridade na menina. Os traços lhe eram muito conhecidos. Os do garoto também, além dele portar um vozeirão que lhe era também muito caro. Ambos passaram alguns minutos olhando as prateleiras com livros quando por fim a garota foi em direção à James:
            - Então, ainda não me reconheceu?
            - Noto que me é familiar, mas meu passado hoje em dia já parece tão longe que realmente fico com medo de arriscar.
            - Nem mesmo se eu chamar o senhor de “tio Jamie”?
            O homem abriu a boca automaticamente e manteve o olhar fixo, assustado com a revelação que aos poucos fazia com que sua mente trabalhasse. Seria verdade? Depois de tantos anos, aquela menininha já era uma mulher. A garota apenas sorria enquanto James se levantava, ainda com as feições assustadas.
            - Não creio, é você? Minha princesa?
            - Sim, Tio Jamie, foi um sufoco achar o senhor por aqui. - disse ela com um sorriso no rosto enquanto abraçava o velho homem como nos velhos tempos.
            - Vejo que o senhor ainda deixa a barba como antigamente. - comenta a garota enquanto da um beijo na bochecha peluda do “tio”.
            James convida então Mary e o garoto para que se sentem, apresenta a eles Isabelle. Isabelle era o amor final da vida de James. A conhecera em Paris, logo após a chegada no velho continente. Não fora um amor comum, mas sim uma conexão ideológica a princípio. Uma união de forças e vontades. Com o passar dos tempos Isabelle se tornou confidente e cúmplice, companheira e sócia de James na nova vida. Talvez a primeira vida que aquele velho lobo tenha encontrado felicidade de fato. Foram para o sul do país onde abriram uma pequena livraria. Viviam de forma simples e feliz, bebendo vinho e lendo livros, conversando até tarde da noite e vendo a natureza florescer. Após contar essa pequena história James então começa com as perguntas:
            - Mas o que você faz aqui, Mary? Depois de tantos anos. E antes de mais nada, aceitam algo para beber? E o seu nome garoto? Não é o William com certeza, é muito diferente, mas me parece bastante familiar, como se eu conhecesse suas feições, sua voz.
            - Muitos dizem que me pareço bastante com meu  pai, e que minha gargalhada lembra muito a dele. - responde o garoto - E se o senhor tiver um bom uísque por aqui eu aceito.
            As sinapses no cérebro de James começaram então a fazer as ligações, era ele, mas mais jovem. A imagem era igual, porém tinha os olhos claros e a pele alva que não eram os de Sean. Mary então terminou com o mistério:
            - Tio Jamie, esse é o James. - comenta ela, com um risinho - Filho do seu velho amigo Sean e da tia Lucy.
            James novamente se assusta com a revelação, o garoto tinha seu nome, mas tinha todo o jeito de se mover e falar de Sean.
            - Muito prazer senhor James, meu pai e minha mãe sempre falaram muito do senhor. - diz o garoto esticando a mão para cumprimentar o velho.
            - Nossa, é realmente muita informação para tão pouco tempo. - comenta o velho apertando a mão do garoto – Vou buscar uma bebida para nós e já volto.
            James traz três copos, um deles com o uísque do jovem James e mais duas taças para que ele e Mary pudessem apreciar a bela garrafa de Chatêau Vaniàrres Rouge que ele trazia acompanhando. Isabelle seguia fazendo seu trabalho, tentando deixar a vontade tanto seu companheiro quanto as visitas.
            - Mas e o que traz vocês aqui afinal? - pergunta James, com a curiosidade aguçada.
            - Bom, eu vim pra acompanhar o James a principio e pra poder rever o senhor, sentia saudades. - responde Mary
            - E eu vim porque quero aprender a escrever com o senhor! – interrompe o jovem James, não segurando a ansiedade - Minha mãe sempre comentou que o senhor era um dos melhores, que poderia talvez ter sido o melhor.
            James soltou então um riso continuo - Talvez, nunca se sabe, mas há muito tempo que larguei os textos e me dedico apenas à leitura, é menos responsabilidade nas costas sabe?
            - Mas eu quero aprender mais, eu quero ser um dos melhores. Eu não tenho medo de arriscar! – exclama o jovem.
            - Gostei da sua audácia garoto, de fato tem muito de seu pai em você.
            - Preferiria que não, mas não consigo evitar que as pessoas nos comparem.
            - Mas por que não? - pergunta o velho.
            - Meu pai não foi bom nem pra mim nem pra minha mãe. Eles se separaram logo que nasci. Pelo que ouvi dizer, logo depois que o senhor foi embora do país. Minha convivência com ele acabou sendo pequena por isso. Eu e minha mãe voltamos para Nova York enquanto ele continuou no rancho.
            - Hmmm, não posso dizer que isso seja inesperado, considerado como o Sean sempre foi. Mas realmente achei que alguma hora ele fosse se aquietar.
            - Hoje em dia ele se aquietou, é velho e não tem mais nada na vida a não ser aquele rancho. Até comentou comigo que sente um pouco de culpa pelo senhor ter vindo para cá.
            - De forma alguma, meu rapaz. Não nego que talvez os acontecimentos do passado tenham acelerado minha viagem. Mas era fato que em algum momento eu ia precisar sair de lá e me buscar em outro lugar, em outras terras. Acho que esse velho lobo aqui precisava de novos ares, um ambiente diferente de caça e de vida.
            - Todos sentiram falta do senhor, tio Jamie. - comenta Mary, interrompendo a conversa.
            - E eu também senti falta de todos, mas com o tempo eu entendi que esse rompimento com o passado era algo necessária para mim. Caso eu continuasse por lá, talvez eu tivesse cada vez mais me tornado um “lobo da estepe” como diria Hermann Hesse.
            - Fico feliz que tenha encontrado uma boa vida aqui, tio Jamie.
            - Mas e vocês, como estão, e seus pais? O Sam, e o resto da turma?
            - Todos estão bem, mas separados pela distância. O tio Sean ficou no rancho. O Lee e a tia Miranda se mudaram e agora são donos de uma loja de discos. O Sam virou professor de música na costa oeste. Meu pai continua casado com a Nancy e eles tiveram um casal de gêmeos. O Will se mudou pra Austrália e trabalha por lá. Minha mãe casou pela terceira vez, e acho que ainda assim não vai durar. A tia Lucy voltou pra Nova York e trabalha por lá.
            - E você, querida?
            - Bom, eu e o James encontramos um no outro a nossa vida, agora pra onde um vai o outro vai também. - respondeu a garota com um sorriso plácido e feliz.
            - Fico contente que ao menos uma história feliz de amor tenha surgido dentre tantos desencontros no nosso grupo. Mas então, jovem James, pretende ser um escritor? E pretendem morar por aqui?
            - Sim senhor, vamos procurar algum lugar assim que o senhor aceitar me ensinar aquilo que sabe.
            - Mas é claro que ensino garoto, seria um prazer, espero ser um professor a altura de tão nobre aluno. Além disso, faço questão que se hospedem conosco enquanto estão por aqui. - respondeu o velho Jamie, com um sorriso no rosto.
            Assim é retomado o laço de James com seus velhos amigos de além mar. Seu velho grupo de lobos. De uma forma segura. Agora com uma nova vida, não queria correr riscos de se encontrar com velhos amores, dessa forma, a ligação dos mais jovens era a única possível de James manter com aqueles que outrora foram seus companheiros de uma vida. A ligação que lembrava a ele todos os dias a razão principal de sua saída daquele lugar, mas ao mesmo tempo dava a ele tanto orgulho por ver naquele garoto muito de si. Era notável nas ideias e na forma de agir que ele, apesar da semelhança externa com o pai, possuía muito da índole e do jeito de ser de Lucy, e mais notável ainda, com o passar do tempo e com as conversas que tinha com o menino, era o fato de que a mãe daquele garoto parecia ter ensinado muito a ele sobre o velho James. Como se o modelo a seguir devesse ser aquele homem que há tanto Lucy havia negado. Isso dava um certo orgulho a James, mexia na vaidade do velho homem, mas ao mesmo tempo não mexia na sua certeza do caminho tomado. Isabelle se acostumou com os jovens, como eles não haviam tido filhos, era interessante ver como aquela mulher tinha dentro de si um enorme espirito maternal.
            Assim terminam as histórias de Jamie e de todos os outros. Ele talvez tivesse tudo para não ter sido feliz, mas no fim das contas descobriu que, simplesmente, a felicidade pode ser mais questão de escolha do que de sorte. A felicidade plena em geral é apenas um oásis em meio a um deserto de verdades. Buscar perfeições e mágicas haviam dado a ele apenas uma porção de calos e lágrimas. A felicidade verdadeira, sofrida as vezes, mas verdadeira quase sempre, é que era palpável e simples. Sem sinais de viver feliz e muito menos para sempre, James seguia o caminho, finalmente sem tanto peso na consciência. A vida é assim as vezes, cheia de coincidências, cheia de encontros e desencontros. De dificuldades de comunicação, e, por mais que seja demasiada real, em certos momentos tem toques de romance, de drama, de literatura ficcional. Talvez a maior história que James pudesse contar, fosse essa, mas ele nunca teria a vaidade necessária para fazê-lo.  Que ficasse então nas mãos de um narrador qualquer, e do imaginário de um escritor qualquer, fosse ele profissional ou amador. Amador, bela palavra, no fim das contas os amadores podem ser aqueles que de fato AMAM aquilo que fazem.