27 de março de 2011

Homem Urso ...



            Chovia demais naquela noite. Sean se encontrava na janela, fumando um cigarro. Eu sentado no chão, recostado em uma poltrona na qual costumava dormir durante as tardes frias do inverno. Paul, quieto, se mantinha trabalhando em seu computador. Esporadicamente dava uma bicada em seu Johnny Walker, então seguia trabalhando desembestado. Estella e as crianças estavam viajando. Tinhamos um local para ficar durante a noite.
            - Olha só aqueles bêbados trôpegos entrando naquele beco. Aposto que vão fazer alguma bobagem - Trovejou Sean, dando uma boa gargalhada.
            Levantei-me calmamente e fui até a janela, cheguei a tempo de ver um casal bastante alterado se agarrando furiosamente enquanto desaparecia nas sombras do beco.
            - Instinto, Sean. Puro instinto. Já contei da vez que fui para aquela cabana com os budas gigantes me vigiando? - Comentei sem me alterar muito.
            - Só umas cem vezes, Jamie. Mas tudo bem, eu escuto outra vez.
            - Pois dessa vez não vou contar sobre os fatos ocorridos naquelas noites. Vou contar sobre a revelação que alcancei naquele lugar. Lá eu aprendi o que é ser um Homem Urso. Apenas a companhia do grande urso negro me manteve vivo, e lá eu renasci novamente.
            Sean me olhou desconfiado e então comentou - Que tipo de drogas você levou pr’aquela cabana?
            - Apenas um pouco de água e mantimentos para uma semana, de resto pretendi viver como um total homem primitivo. Não gosto desse termo, mas o uso para facilitar seu entendimento. Caçar, cortar madeira, buscar água no poço. Eu havia nascido com todas as ferramentas necessárias, meu amigo. Precisava aprender a usá-las, e o grande urso negro que os Cherokees falam em sua lenda me ensinou.
            Eu parei para ir buscar um pouco de água na geladeira, Paul havia parado de martelar o teclado e ouvia a minha história também. Olhou para mim e disse:
            - Continua, homem. Quero saber o fim dessa história.
            Voltei e me sentei na minha cadeira por uso capião, então continuei contando:
            - Pois bem. Apesar das provisões para uma semana, vocês bem sabem que eu fiquei lá por mais ou menos um mês, depois de um tempo eu parei de contar os dias e perdi essa noção. Desisti também de fazer a barba e todas essas outras distrações que me faziam gastar um tempo precioso daqueles belos dias. Tomei banho naquele riacho com a temperatura já nos negativos. Comi peixe sem medo de espinhas e devorava quaisquer frutos ou sementes que encontrava. Meu olfato já podia sentir esses diferentes cheiro de longe.
            - Quer dizer que virou mesmo um homem das cavernas? – Gritou Sean, dando sua gargalhada tão típica.
            - Um homem urso. Entenda Sean, para mim o homem urso significa o homem que mantém suas próprias regras. Um homem que mantém uma ligação com a natureza ao redor e com a sua própria natureza selvagem, se assim posso dizer. Vivo por meu próprio código de conduta, não me encontro na cidade, nunca mais me encontrei totalmente aqui. Vocês me conhecem melhor do que ninguém.
            Paul então disse:
            - Mas está aí, bem tapado agora, quase tremendo de frio e desfrutando de água da geladeira e uma boa lasanha congelada.
            - Aquele homem urso teve que ficar lá, aquele homem morreria aqui, o cheiro daqui destruiria o olfato dele. Ele não entenderia as pessoas. Ficaria acuado ou raivoso. Aqui está de volta o James que vocês sempre conheceram. Mas agora com algum conhecimento a mais de si mesmo.
            - James, você é o cara mais maluco que conheço cara, sério. E você não bebeu nada hoje. Diabos, me passa um pouco de scotch, Paul, isso merece um brinde.
            Brindei com eles em meu copo d’água. Não sei se entenderam minha história, não sei se queriam entender ou se buscavam apenas um pouco de diversão para uma noite chata ou uma folga do trabalho. A verdade é que é estranho entender os homens urso, apesar de ter sido um naquela experiência, eu voltara a ser um homo urbanus. Eu nada mais tinha daquele urso negro, apenas a lembrança do que vivi, e como flashes difíceis de serem entendidos. Pode ser tudo apenas uma enorme viagem da minha mente, ela se perdeu completamente em algumas noites e dias que vivi naquela cabana. Estava “sozinho no topo da montanha”, como meus maiores heróis certa vez já estiveram. Renasci duas vezes, e as lágrimas foram um rito de passagem ao descer até o sopé da montanha. Me despedi dos budas e do urso negro. Voltei a ser o velho James, não sei se marcado pela experiência, já que dela pouco me lembro. Só sinto que viver aquilo foi necessário naquele momento. Me fechar para mim mesmo.Viver as regras que havia criado dentro e mim, tornar-me um urso selvagem. Um verdadeiro homem urso.

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Para quem possa interessar, a lenda Cherokee do Homem Urso pode ser encontrada aqui (texto em inglês): http://www.firstpeople.us/FP-Html-Legends/TheBearMan-Cherokee.html

20 de março de 2011

"O Vento ..."



            O sol invernal não ajudava a aquecer naquela manhã de dezembro. As águas do Atlântico eram as mesmas que já havia conhecido anos atrás, e ao mesmo tempo não. Eu tinha a fronte já queimada pelo tempo que estava no mar. Sentia-me um pouco cansado e solitário demais no fim da viagem.
            Certa vez me falaram que o mar é um dos inimigos mais implacáveis para derrubar um homem. Eu nunca fora um homem do mar. Tinha um amigo que conhecia bem a pratica de velejar e me ensinou tudo que sabia, porém nunca havia velejado sozinho até essa data. Foi quando surgiu essa bela oportunidade. Uma pequena viagem para realocar o veleiro desse meu amigo. Um favor para ele, uma aventura, oportunidade de me colocar sozinho comigo mesmo e a par dos meus pensamentos. Obviamente, ele pensou em mim na mesma hora quando comentou dessa viagem em uma época em que ela deveria ser feita por um só homem, afinal, as festas de fim de ano estavam acontecendo, e ele não conhecia ninguém tão tranquilo com a solidão como eu. Me lembro bem de suas palavras na ocasião.
            - James, preciso de um favor que só você pode me fazer, levar o meu veleiro para minha cidade. Você sairia em dois dias, isso significa que quando as festas chegarem estará sozinho no mar. Aceita? - Eu aceitei.
            - Sabia que não me decepcionaria, quando pensei na solidão do mar sabia que era o homem certo para isso. - Disse ele, com um sorriso feliz na face.
            A primeira semana foi espetacular, as maravilhas que vi, os sentimentos que me passaram pela cabeça, são indescritíveis para quem não estava lá. O horizonte a perder-se de vista, aquela estrada azul enorme à minha frente e a calma do balançar sob meus pés. Escrevi, pensei, repensei, refleti. E a verdade é que, alguns dias depois, já tinha uma fome de palavras faladas. Queria ouvir uma voz que não fosse a minha. Queria a voz de trovão de Sean gritando algum disparate. A voz mansa de Evelyn por trás de seu sorriso torto, comentando sobre sua última pintura. A calma de Sam ao me explicar por que ele havia mudado o tom de sua última criação melódica.
            Fiz um café, sentei no meu local já habitual na popa, o mar estava parado, mas eu sabia que logo o vento chegaria. Estiquei-me bastante e comecei a preparar as velas. Acho que estava enganado. Sempre acreditei com muita força que era fácil conviver comigo mesmo. Passei meu aniversário no mar. Pela primeira vez na vida sem um chão abaixo de mim. Somente litros e litros de água. Brindei sozinho “às causas perdidas...”. Sempre brindava a isso nesse dia. Talvez naquela vez tenha feito mais sentido do que em todas as outras.
O vento começou a soprar bem forte. Mudança, seria típico pensar nisso, mas para mim significava mais. Significava o retorno. Significava a saudade sendo corrida de meu peito a pontapés. Sorri ao ver a terra, senti o vento em meu rosto, fazendo curvas nas marcas que ele já possuía. O mar acaba com os homens. Acho que entendo a frase agora. Aprendi a respeitar esse grande “ser”. Meu oponente e até companheiro. Pensei , na época, que talvez eu ainda voltasse a enfrentar e me aventurar por ele novamente. Mas sabia que naquele momento queria não depender do vento, queria que ele soprasse de forma trivial, desinteressado. Fosse uma brisa ou uma ventania, me dissesse apenas palavras boas e não trouxesse perguntar difíceis. Ou então que apenas soprasse, displicentemente, nas manhãs de inverno, embalando tantos navegantes solitários por outros mares que ainda não conheci.

5 de março de 2011

Aquele louco bando de lobos ...


    Eu gostava daquele grupo, éramos unidos, cada um em suas semelhanças e diferenças, e tínhamos muito de ambas. Independente de qualquer coisa, lembro que a amizade era grande demais para deixar quaisquer feridas nos separarem. Eramos um bando uno, e mesmo que em meio a todos os tempos e contratempos, por épocas inteiras, eu tenha me sentido bastante solitário, mesmo envolvido por todos ou parte deles. Na verdade eu sinto que me dava bem com todos, mas nem todos se davam bem uns com os outros, e olha que eu sempre fui o tímido e quieto do bando.
    Sean era maluco, sempre sem um emprego fixo, louco atrás de mulheres. Se para mim o dia só fazia sentido quando eu tinha conseguido falar tudo que quis falar, para ele o sentido se dava quando ele terminava na cama com alguém. Independente de beleza ou cérebro, Sean tinha no sexo sua busca quase épica. Obviamente sua vida não se resumia a isso, mas me lembro muito bem das ocasiões em que via Sean no outro dia, em algum bar, ou quando ele me ligava para compartilhar uma xícara de café e algumas palavras, com um sorriso estampado no rosto. Esses eram os bons dias de Sean, o homem com a voz de trovão, e que me via como um santo, ou então algum amigo capaz de aguentar seus assuntos intermináveis por horas a fio. Uma das minhas grandes lembranças dele foi em uma festa na casa de um conhecido, Sean sumiu com Evelyn durante umas 3 horas. Lá pelo meio da madrugada, em meio a vários bêbados, eu me lembro de estar na beira da piscina, sozinho com meu caderno de notas e um cigarrinho, e ver Sean descendo as escadas, só de cuecas e completamente chapado. Ele foi até a beira da piscina, olhou para o canil e falou:
    - Olha só todos aqueles cães, presos nesse pedaço de terra minúsculo sem ter como sair, a gente faz um mal danado pra esses bixos, Jamie, a gente prende eles. Promete que nunca vai deixar que ninguém me ponha em um aquário cara?
    Eu olhei bem pro Sean e disse - É difícil manter um lobo alfa confinado Sean. No seu caso acho que ninguém tentaria.
    - Acho que tem razão, Jamie. Acho que sim, vou voltar para a Evelyn, ela tá doidona.
    - Volta lá, e vejam se não exageram, o hospital mais próximo fica há quilômetros daqui, e acho que ninguém tem condições de dirigir no momento.
    Sean fez um sinal com a cabeça, coçou o escroto como se estivesse sozinho na sua sala de estar, se despediu dos demais a sua volta e subiu as escadas em direção ao quarto. Definitivamente ele era o lobo alfa do nosso bando, alguns que não nos conheciam bem achavam Sean um tanto imaturo, mas eu sabia que ele apenas queria sugar tudo que essa vida poderia dar para ele, era a pessoa mais intensa que conheci em toda minha vida, e tanta intensidade e brilho tendem a cegar algumas pessoas ao redor. Era um líder nato, e um louco único. Independente de qualquer coisa, não fosse por ele, nunca teríamos conhecido Evelyn.
    Eve era especial, uma grande artista, entendia sobre qualquer coisa que fosse importante saber: arte, música, cinema, literatura, filosofia, gastronomia... Foi a mulher mais forte que conheci na minha vida, e talvez tenha sido meu grande amor. Depois de anos de existência ainda não sei explicar se reconheço esse sentimento, senti ele várias vezes, e por várias pessoas, inclusive ao mesmo tempo, assim sendo apelidei isso que sinto assim: "amor". Minha memória nunca funcionou muito bem, mas com Eve ela parecia ganhar um vigor maior do que o normal, quando estava com ela escrevia mais e melhor, vivia mais e melhor. Me lembro muito bem do dia no bar em que nos conhecemos, e a forma como tudo se desenvolveu, sentíamos sentimentos mútuos muito fortes, ficamos íntimos muito rapidamente, ainda assim foi Sean quem a conquistou primeiro. Mas Sean nunca fora homem de uma só mulher, e isso incomodou Eve a princípio. Depois, tivemos nossos momentos, nossos lugares especiais, inclusive nosso lugar único. Não sei dizer ao certo quanto tempo passamos juntos, o tempo com Eve era diferente, só de olhar para ela, para seus cabelos crespos e seus olhos grandes e castanho escuros, me fazia pensar que anos se passavam em segundos e eu havia ficado paralizado por aquela beleza. Certa vez conversávamos na cama e Evelyn me disse:
    - Acho que devemos nos casar.
    Me asustei com essa assertiva vinda do nada e questionei ela - Por que? Pensei que era contra essas coisas, eu ao menos acho que sou.
    - Não sei, queria alguma garantia, tenho medo que seja infiel. - Respondeu ela, com um ar indefeso que era novidade para mim.
    - Não sou um bufão sulista Eve, não vou trair você nem que acabe amando outra pessoa.
    - Acha possível amar duas pesoas ao mesmo tempo? - Perguntou ela arregalando ainda mais os grandes olhos.
    - Acho que sim, não entendo esse sentimento Eve, sou racional demais para isso. E acredite, é essa racionalidade que me faz garantir que não faria nada para machucar você.
    - Meu ex-marido era racional.
    Suspirei e coloquei a mão no ombro dela. - Desde quando um homem que levanta a mão para mulheres é racional? Seu ex-marido era um descerebrado, se pessoas como ele souberem o que é amor ou disserem saber, prefiro continuar na minha ignorência sentimental.
    Evelyn sorriu, mas ainda parecia preocupada, eu me levantei, coloquei minha roupa e disse:
    - Além do mais, foi você que escolheu Sean antes de ficar comigo.
    Evelyn se enraiveceu. Levantou de pronto e começou a vestir sua roupa. - Não acredito que ainda tem coragem de tocar nesse assunto, sabe muito bem por que acabei ficando com o Sean.
    - Sei sim, e ainda assim a minha forma calma e paciente de demonstrar meus sentimentos não era razão para desitir de mim.
    - Jamie, eu esperei por você por um ano, um ano inteiro da minha vida, e você parecia uma marionete dos livros, parecia amar eles mais do que a mim, apesar de suas palavras dizerem o contrário.
    - Pois deveria ter confiado nas minhas palavras... - Parei quieto por alguns momentos e sentei na cama. - Tem razão, perdão, fui um bobo, minha literatura sempre foi meu maior amor, talvez por isso eu não entenda completamente essa palavra.
    - Parece que não se lembra do dia em que nos conhecemos... Aquela foi minha maior prova de que gostei de você a primeira vista.
    - Me lembro como se fosse ontem, minha querida. Agora pode voltar a deitar, vou até o mercado comprar um pacote de seis cervas e alguns cigarros. Não se esqueça que Miranda vem nos visitar hoje.
    Essa foi minha única briga com Eve durante todo nosso tempo juntos. Nos separamos tranquilamente um tempo depois e ela voltou para Sean. A verdade é que se eu não sabia o que era amor, Evelyn sabia menos ainda. Ela achava que conhecia esse sentimento mas nunca vi ela conseguindo mantê-lo por muito tempo, inclusive com Sean, algo que terminou rapidamente e com corações partidos. Nossos caminhos se cruzaram mais vezes nesse sentido, mas nunca nos casamos, como ela havia me pedido naquela manhã na cama. Ouvi dizer que alguns lobos só tem um companheiro para toda a vida, talvez não seja assim com nosso bando. Ou talvez seja mentira esse negócio sobre os lobos.
    Miranda era irmã gêmea de Evelyn, em vários sentidos era igual a irmã, mas não físicamente. Compartilhavam apenas a mesma idade e os pais, mas Miranda saiu de casa bem antes de Eve, e nunca mais voltou. Antes de nos conhecermos Miranda apenas havia visto a irmã durante a infância e adolescencia, e então no velório dos pais. Dona de uma alma impulsiva maior que a irmã. Do bando era aquela que uivava com a maior doçura e beleza, tinha uma voz prodigiosa e uma aparência tão bela quanto a da irmã, apesar de ter os olhos claros da mãe e usar o cabelo mais curto, na altura do queixo. Tinha da irmã também o narizinho pequeno e perfeito, mas o sorriso não era com o canto da boca. Miranda sorria com os olhos, com as mãos, com o corpo todo. Era alegre em qualquer situação. Conheci ela através de Samuel, muito antes de conhecer Eve, assim sendo, só descobri que eram irmãs muito tempo depois. Miranda foi minha confidente por anos enquanto ainda dava os primeiros passos como escritor, e eu fui seu amparo enquanto ela vivia na noite cantando em troca de cachês ínfimos. Tínhamos um sentimento de irmandade enorme, com o tempo isso se modificou no tal amor, ou assim eu achava. Nos curtimos bastante, e por um tempo isso foi suficiente. Me fez pensar em me estabilizar, em plantar raízes, mas isso não parecia ser possível com ela. Viajamos pelo país inteiro, hora sozinhos, hora com o resto do bando. Certa vez estávamos no Canadá, havíamos cruzado a fronteira naquela noite atrás de Sean e eu estava louco para me encontrar com um barman que havia conhecido anos atrás quando fui visitar Chad e Suzie logo após o casamento dos dois. Nunca soube o nome dele, o apelido era Cachorro Louco, e ele fazia algumas combinações com cogumelos e alguns tipos de ervas que nunca tinha visto na vida. Mas Miranda acabou com meus planos. Se queria estar com ela precisava estar limpo, ela não gostava daquilo e não permitia que eu gostasse:
    - Quero mudar o mundo James, quero fazer algo significativo, e não posso ter comigo alguém caindo pelos cantos e sendo um louco perdido. Precisa aprender a ser responsável.
    - Eu sou responsável, nada do que fiz me impediu de fazer meu trabalho, muito pelo contrário, sempre me inspirou.
    - Eu falo sério Jamie, a vida é mais do que uma última tragada ou um último gole.
    Eu desisti dos cogumelos. E de fato, o tempo em que estive com Miranda foi talvez a época mais saudável de minha vida. Mas nunca entendi bem essa necessidade de mudar o mundo que ela tinha, era ambição demais para um cara simples que nascera no interior como eu e queria, a princípio, apenas viver o suficiente para ler aquilo que pretendia ler e escrever todas as palavras que pareciam necessárias serem escritas. Com o passar dos meses fomos nos tornando cada vez menos amantes e voltando a sermos irmãos. O fim nem sempre é amargo, mas dessa vez foi, e salgado, com lágrimas em meu rosto, chorando, algo que havia prometido a mim mesmo que nunca mais faria. Como quando tinha  uns 16 anos e estava sentado nos pés da minha cama, no escuro, abraçando minhas prróprias pernas e apoiando a testa nos joelhos. Por causa daquelas perdas.
    Já Samuel era meu irmão do bando. Eu o via como um guia espiritual ou um oráculo. Além disso era simplesmente o cara mais inteligente que já vi. Nos conhecíamos há sabe-se lá quanto tempo, e ele sempre pareceu me entender melhor do que ninguém. Me aprensentou Miranda pois eram bons amigos desde a faculdade de música. Sam era o cara mais talentoso que conheci nesse mundo. Era poeta e tocava blues como ninguém. Enquanto Sean fazia com que eu me movimentasse e vivesse com mais intensidade, Sam fazia com que eu me concentrasse e tentasse refletir e entender a vida. Me ensinou a meditar e mochilou comigo através da américa do sul. Fomos para lá sem saber mais do que meia dúzia de palavras em espanhol, mas nos demos muito bem. Tinhamos pouco dinheiro no bolso mas uma vontade muito grande e criatividade para vivermos com o pouco que nos era dado. Acampávamos ou dormíamos em estações de trem. Comíamos quando possível e bebíamos vinho barato durante o inverno.
    Já na volta para casa, estávamos acampando na Barra del Rodro, no leste do México, quase na divisa com o Texas, e Sam disse:
    - Notou que tudo se encontra aqui nesse momento, Jamie?
    Ambos estávamos deitados, um de cada lado da fogueira, de modo que eu apenas podia ouvir sua voz, fazia um pouco de frio e eu mantinha meu poncho enrolado no corpo. Olhava para o céu estrelado  e não pensava em nada, assim, essa pergunta me pegou de surpresa. - Como assim tudo se encontra aqui?
    - Sim, Jamie, nossas vidas não passam de pó de estrelas aqui nesse momento, não consigo lembrar mais do natal passado, ou de minha infância, e minha meditação nunca me levou a vislumbrar o futuro. Estamos aqui nesse momento, tudo e todos.
    - Parece que quer me dizer "carpe diem". - Falei em tom de brincadeira e dei uma risada.
    - Não seja bobo, não quero que saia como o Sean, vivendo como se não houvesse amanhã. Ele é um homem de pouca fé, sabemos que existe o amanhã, e caso não haja que viveremos no infinito até completar nossas necessidades. Mas quero que entenda a importância dos pequenos momentos, como se a cada segundo você tenha o poder de controlar o tempo, e de fazer com que ele passe mais rápido ou mais devagar. Fez sua meditação hoje?
    - Não, minhas costas doíam demais, e minha cabeça também. Acho que é ressaca.
    - Desculpas e mais desculpas, tem refletido pouco ultimamente, tem algum medo de se encontrar consigo?
    - Sabe que eu tenho as minhas fases Sam, voce também as tem. Me dá um desconto.
    Sam começou a rir, se levantou, foi até a barraca e começou a dedilhar seu violão. Eu fiquei ouvindo a sonoridade das cordas e comecei a pensar no que ele havia me falado. Talvez eu não estivesse sendo sincero comigo mesmo. Talvez naquele momento eu devesse mudar. Falei para ele:
    - Sam, meu velho. Vou voltar a escrever, já é hora de terminarmos nossa viagem. Vejo que você não largou sua arte, aproveitou todos os momentos que tivemos, e levou seu violão. Eu deixei no lugar que chamo de casa meu lápis e meu bloco.
    - Talvez tenha entendido, independente das fases, independente da inspiração ou não, não deve largar sua arte meu amigo. Ela no fim das contas acaba sempre sendo sua eterna companheira.
   Terminamos a viagem e eu voltei a escrever. A época talvez tenha sido a das minhas histórias mais auto-biográficas, e talvez eu tenha começado a me conhecer melhor do que nunca. Não tinha mais a pressa da vida, controlava o meu imediatismo com a meditação ensinada por Sam, me tornara mais calmo.
    E falando em calma me lembro de Paul, o lobo mais calmo e menos louco desse bando. Sempre fora sério, poderia ser o líder se quizesse sem dúvida nenhuma, mas sempre teve medo das consequências de tudo, se deu bem na vida. Casou com Estella, a quem sempre jurou amor eterno. Se separaram no fim das contas devido a uma traição dela. Me lembro que nos encontramos um tempo depois em um café. Ele andava sempre ocupado, e estava procurando um apartamento o mais rápido possível. Ofereci para ficar na minha casa mas ele era orgulhoso demais para aceitar:
    - Não sei o que fazer, James, não esperava isso por parte da Estella.
    - Eu sei o que você vai fazer, vai trabalhar, vai buscar algo que goste, encontrar alguém melhor, etc, etc. Aquele monte de baboseiras que todo mundo fala. Você nasceu para ser um líder Paul, é natural, mais natural que Sean, mas parece que tem medo disso, é responsável mas tem medo de todo seu potencial.
    - Não me acho melhor do que ninguém, James.
    - Não é melhor do que ninguém, mas tem potencial para ajudar muitos. Para fazer certas coisas que outros não podem. De nosso grupo você é o cara que mais poderia mudar o mundo, e escolhe ficar sentado atrás de uma mesa seguindo as ordens de caras sem um pingo de cérebro, você é um covarde.
    Paul me fitou com os olhos arregalados, acho que nunca tinha sido tão sincero com ele. - Não sei James, não sei mesmo, mas me fala sobre aquele apartamento que você disse que conhecia...
    E assim eu falhei com Paul, mas acho que qualquer um estava destinado a falhar com ele, ao menos naquele momento, a verdade é que aquele lobo havia perdido a coragem, pensei que não sabia mais morder, mesmo que todos tivessem a certeza de que era o maior caçador do bando. Paul se afastou um tempo depois. Dias atrás mandou uma carta, bem ao estilo antigo, endereçada à todos do nosso grupo, com ela vinha o convite para seu casamento, e um adendo que, imagino tenha ido para todos os outros do grupo, dizia mais ou menos assim: "Esse lobo aqui ainda sabe viver, mesmo sem bando eu ainda sei caçar, não sou um covarde". Bom, talvez a mensagem tenha vindo só para mim, a verdade é que fiquei mais feliz, me irritei com Paul daquela vez, mas talvez ele seja mais corajoso que eu no fim das contas. Independente de qualquer coisa liguei para ele na mesma hora e conversamos bastante sobre os velhos tempos e sobre essa nova empreitada, confirmei fervorosamente minha presença no casamento e pensei na possibilidade de reunir o grupo de amigos novamente.
    Talvez lá eu encontre Lucy, talvez a loba mais misteriosa do grupo, Lucy tinha a pelagem completamete branca, se fechasse os olhos na neve poderia ficar totalmente camuflada. Sim, tinha a pele alva, e acredito que todo seu ser também era puro e límpido. Sempre fora bastante fria, mas tinha um carinho especial por todos nós, de todo o bando foi a única com a qual nunca tive nenhum relacionamento, talvez a amasse mais até do que Evelyn, mas nunca tive com ela a facilidade de me expressar, logo eu que era tão bom com as palavras. Talvez fosse possível quebrar o olhar frio e chegar no cerne dela, que eu conhecia e sabia ser carinhoso e amável. Mas me lembrei do que Sam falou sobre não criar expectativas e não esquecer da minha arte.
    Meu bando sempre foi assim, figuras excepcionais, cada uma com sua habilidade, seu encargo. Sinceramente o único que sinto ser deslocado dentre todos era eu, com o tempo me tornei um lobo solitário, deixei de uivar, não conheci outro bando. Talvez eu sempre tenha sido solitário no fim das contas, mesmo naquele bando, ou talvez eu tenha sido um coiote tentando andar em meio aos lobos... aquele louco bando de lobos.

1 de março de 2011

"Hora do mergulho ..."

    
    O vento passava velozmente pelo rosto da mulher e fazia seus cabelos ficarem mais ondulados ainda, sendo jogados para trás com força. O Corvette 61 do pai dela ainda tinha toda a potência de quando ele a ensinara a guiar nas estradas de chão, perto da fazenda. Ahhh que dias fáceis eram aqueles. Sem dúvidas sobre o que fazer, almejando apenas se divertir. Tinha diversos amigos na cidadezinha de interior, e quando ia ao centro sempre se encontravam. Era bom estar entre eles, não se sentia bem fazendo "coisas de menininha", por isso tinha mais amigos garotos.
    Lembra que a mãe sempre reclamava disso, e ficava repetindo que deveria ser mais como a prima. Sempre bem arrumada, aprendendo as coisas com a mãe e se preparando pra uma vida incrível. Ela nunca fora assim, não era rebeldia, apenas não gostava de água parada e sentia que precisava sair daquele buraco. Se formou em artes e foi para o norte. Cidade grande, luzes, toda a nata intelectual que não podia encontrar no sul com suas enormes plantações e sotaques estranhos. Foram alguns anos depois que recebeu a notícia da morte da mãe. Lembrava-se exatamente da viagem de volta, lembrava da ida para o norte carregada pela felicidade e dessa volta ao sul embalada por lágrimas e uma letargia quase incontrolável. Sucedendo tudo isso a doença do pai fez com que ela se visse presa em sua cidade natal. Tomou conta da fazenda, devia tudo àquele pai maravilhoso que tivera, que a havia apoiado em todas suas empreitadas e que via o que os outros chamavam nela de excentrícidade como originalidade e uma criatividade incomparáveis.
    Seu ânimo era pouco e ralo, as expectativas eram pequenas, perdia talvez seus melhores anos de criatividade em uma cidadezinha de quinze mil habitantes há centenas de quilômetros das grandes galerias. Não pintava mais, não por falta de criatividade, mas lhe faltavam forças e vontade, parecia um conspiração para derrubar todo seu ânimo. E derrubada assim, quase uma sombra nula do que já fora, conheceu alguém que lhe fez um pouco mais feliz naquela hora tão desesperada. Bobby definitivamente não era perfeito, mas naquele mundo em que se encontrava foi o máximo que ela pensou possível encontrar. Perdera as esperanças e não parecia a mesma mulher. Encolhera-se em um casúlo. Era como se a borboleta voltasse a ser larva, sem notar que esse tipo de movimento é anti-natural.
    Obviamente o casamento não durou, uma mulher como ela não iria aguentar por muito tempo um macho alfa como Robert., É claro que no início as coisas funcionaram, mas com o tempo vieram traições, viagens longas, e até uma tentativa de agressão que terminou com Bobby fugindo da casa de cuecas, enquanto ela tentava fazer mira com a velha calibre doze do pai, eram algumas das situações que ela teve de suportar. Não nascera para aquilo, nem para se submeter a esse tipo de vida. Tinha todos os sonhos do mundo em seu cerne. Foi nesse momento que olhou para a fotografia do pai em cima da lareira. Ele não mais habitava aquelas paredes, a fazenda há muito deixara de ser aquele lugar que, apesar de simples e rústico, tinha suas lembranças felizes. Pensou no quanto não aguentava mais sentir o ar preso nos pulmões, em quanto precisava descongelar e tentar ganhar um pouco do tempo que havia perdido.
    Era hora de mergulhar novamente em águas mais profundas, lá se sentia bem, se sentia calma em meio aos milhares de cardumes que passavam a sua volta, sentia aquela sensação de surdez mesmo com os milhares de sons da cidade. "Feche os olhos, tome ar, é hora do mergulho". Tirou da  garagem o velho carro do pai e se encontrava novamente na estrada. "A estrada é a vida ...", pensou ela. Novamente livre.

    "Well, I feel, yes I feel
    feel that a low down time ain't long
    I'm gonna catch the first thing smokin'
    back, back down the road I'm goin'"

    - É isso mesmo Muddy ... - Sussurrou enquanto acelerava ao máximo com as estrelas chispando sobre os cabelos.

    Ela encarava aquela estrada aberta e escura com o carro do pai, ouvindo as músicas que ele lhe ensinara a gostar. Sentia praticamente sua presença ali. Sentia que o que fizera deixara-o feliz, e isso para ela estava de ótimo tamanho. Não entedia como havia aguentado tanto tempo parada naquela cidade, com aquele homem, e questionava de seus atos, mas ao mesmo tempo os aceitava, era hora de prender a respiração e saltar. Alguns quilômetros a frente avistou a capital, e decidiu parar em um bar.
    Entrou, fazendo um sorriso com o canto da boca, notou que conhecia a banda que tocava no jukebox, mas simplesmente não conseguia lembrar o nome, sabia que era bom. Sentou há um banco de distância de dois homens que conversam, um deles usava um chapéu de cowboy e falava alto, quase gritando, o outro tinha um caderno e uma caneta soltos no balcão a sua frente e parecia falar mais baixo e de forma mais calma. Pediu ao garçom um Martini com vodka e então o homem com o vozeirão gritou:

    - Hey, por que diabos as mulheres nunca pedem um scotch? Não entendo esses drinks.

    Evelyn riu sozinha da assertiva do estranho. Talvez finalmente as coisas pudessem ficar interessantes ...