11 de junho de 2011

Ins-Tinto ...


                Estávamos lá, Sam e eu. Sentados nos tamboretes do bar após mais uma noite de apresentação. Sim, tocávamos em troca de uns trocados no bar de um amigo de Sam. Fazíamos geralmente a abertura para alguma banda mais conhecida na cidade. No repertório, o bom e velho blues, e mais todas as outras músicas que a coordenação de Sam permitisse, bem como a minha voz calejada e o pouco que eu conseguia ainda soprar na harmônica. Aquele dia tinha sido legal, ouvir as poucas pessoas cantando junto, os amigos fazendo festa, mesmo que alcoolizados. Me sentia bem bicando minha água mineral depois do mini-show.
                - Certo, Jamie, fizemos nossa parte. – disse Sam enquanto tomava sua água.
                - É, bela parte. Agora é hora dos profissionais, já tá acumulando gente pra caramba por aqui. – respondi olhando para os lados como se para ter um panorama geral.
                O som da outra banda começou no outro ambiente, ouvíamos apenas o barulho abafado e o canto que vinha das pessoas que acompanhavam o rock. Algumas pessoas se mantinham ali no bar, onde era mais sossegado. A copa era um bom lugar, arredondado, nós estávamos na ponta da esquerda, de modo que ficávamos exatamente de frente para os tamboretes da ponta direita. Num deles se encontrava uma bela moça. Acho que tinha por volta de uns 30 anos, talvez um pouco menos, sempre fui terrível pra fisionomias. Notei que Sam também havia visto ela. Olhava como se enfeitiçado. A moça tinha olhos castanho claros, bem claros mesmo, cor de mel. Na volta tinha um lápis bastante escuro, o que dava ao seu olhar uma característica marcante e ao mesmo tempo lúgubre. Não que fosse triste, mas carregava um certo peso. A pele era extremamente alva, dava a idéia de ser extremamente sedosa. Os cabelos eram morenos e muito finos, passavam um pouco da linha dos ombros, mas não muito mais do que isso. Um lado caía levemente sobre o bochecha direita e o outro se mantinha preso atrás da orelha. A boca era bastante rosada e não parecia estar usando batom, apenas um brilho que dava a aparência de estar constantemente molhada e chamativa. Tinha um porte magro, o que fazia com que não tivesse muitas curvas, mas combinava bastante com o “desenho completo”. Sumarizando rapidamente, era linda.
                Bebia algum drink trabalhado. Não faço idéia de qual fosse. Sam notou que eu a olhava e escrevia em meu caderninho. Chamou o barman e disse:
- Milles, traz uma garrafa daquele vinho do porto e duas taças pra mim e pro Jamie.
Milles, de pronto assentiu e pegou a garrafa de vinho do porto. Colocou calmamente duas taças no balcão e então serviu metade delas com o líquido.
- Já vi que gostaram da garota, não tiram o olho dela não é mesmo amigos? - denunciou Milles com um sorriso meio fanfarrão no rosto.
- Linda, nunca tinha visto ela por aqui, vem com frequência? - inquiriu Sam
- Pelo menos uma vez por mês ela vem, em geral fica só no bar, algumas vezes vi ela com alguns amigos e amigas, mas quase sempre sozinha. Senta ali, bebe alguns drinks e então vai embora sem deixar muitos rastros.
- Bela menina hein, Jamie? - me falou Sam, enquanto me dava um cutucão.
- Se é, não entendo como não a vi entrar. - dei uma risada e uma bicada no meu vinho.
- Por que não vai lá falar com ela?
- De jeito nenhum. Ela me faz lembrar uma mulher que Hemingway vê em um de seus livros. Ele está em um café em Paris e vê entrar uma mulher lindíssima, trocam olhares, talvez até pensamentos, mas no fim das contas ele ou ela vai embora, não lembro qual agora, e isso é tudo.
- Hemingway não se matou?
- Touchê!
Derrubamos até metade da garrafa. A mulher visivelmente olhava para o nosso lado do bar vez e outra, mas como sempre fui muito desligado não sabia dizer se era pra mim ou pro Sam. Comecei a sentir um enorme desconforto com a situação. Até que terminei minha terceira taça e dei um tapinha no ombro de Sam.
- Vou tomar meu rumo, chega de vinho por hoje meu amigo, amanhã o dia é longo e eu pretendo trabalhar. Nos encontramos a noite e ligamos pro Sean?
- Certo, certo. Cuidado com a direção, já bebeu três taças.
- O Impala já conhece o caminho de casa. - retorqui sorrindo.
Saí do bar acenando para Milles e ainda dei uma olhadela para a mulher. Sam seguiu lá. Cheguei em meu apartamento mais ou menos uns 20 minutos depois. Era relativamente perto, mas eu dirigia a 30 por hora por conta do álcool. Deitei no sofá e liguei a televisão. Além do canal de vendas não tinha nada mais interessante para assistir. Perto das 3 da manhã começou a passar um filme do Hitchcock e eu resolvi assistir. Acabei pegando no sono na metade. Acordei de susto no outro dia por volta das 9 da manhã. Era o telefone. Estiquei o braço e levei ele ao ouvido.
- Alô?!
- E aí, Jamie, como foi a noite?
- Curta...
- Eu sei eu sei, é cedo mas eu precisava te ligar.
- E por que?
- Bom era só pra dizer uma coisa.
- Diga.
- Era pra dizer que o Hemingway não tava com nada.
Dei uma enorme gargalhada - De fato, Sam. Acho que muitas vezes ele não tava, mas lembre-se que ele era casado. Nos vemos a noite?
- É claro, e ainda bem que eu não me casei ainda não é?
- Fato.
- Um abraço cara!
- Abraço, Sam. Não vá se perder no caminho, e mande um oi pra morena dos olhos de mel.
Nunca mais vi o Sam com a morena, nem ele me contou o que de fato aconteceu. Mas mantenho os olhos de mel meio lúgubres por causa da maquiagem na memória. Talvez o Hemingway tenha errado mesmo, ou talvez ele tenha visto algo de estranho naquele olhar. Talvez as vezes o que nos faz ficar congelados sem ação é algo que captamos numa frequência inumana. Aquilo que nos animais se chama instinto. Não sei, acho que Sam acabou dando com os burros n’água. Nunca toquei no assunto, não era da minha conta. O fato é que naquela noite saímos com Sean e a morena não foi mencionada. Talvez Hemingway ou até Zola, mas não a morena. Talvez o mel daqueles olhos não fosse tão doce, e aquele olhar pesado tivesse sua razão de ser.