24 de dezembro de 2011

(Mais Um) "Conto de Natal"



            Nevava bastante naquele dia, o entardecer começava a apagar a luz natural de mais um dia de inverno e James saía de um mercado com uma sacola reforçada de compras. O vento fez seu corpo balançar com violência enquanto abria a porta do estabelecimento e tentava manter-se equilibrado. James olhou para o céu e pensou: “Bom, ao menos a neve deve parar até anoitecer”.
            Seguiu o caminho a pé até seu apartamento, cumprimentou como de costume o porteiro que parecia mais sorridente do que o usual e entrou no elevador para chegar até o sétimo andar. Ao entrar no apartamento foi recebido pelo som da televisão que havia deixado ligada, um comercial era veiculado num dos principais canais de TV, mostrava um Papai Noel carregando seu trenó com produtos de uma conhecida rede de móveis e eletrodomésticos.
            - Quanta babaquice ... – comentou, desligando a TV.
            James, cada vez mais se irritava com o apelo consumista daquela época do ano, e não só daquela, como de todas as outras. Tinha a sensação de que as grandes redes de venda faziam com que o ano parecesse uma sucessão de datas consumistas e alimentavam um desejo das pessoas para que os dias entre essas celebrações fossem apagados. Ligou o rádio e começou a fazer seu macarrão com queijo, ao mesmo tempo serviu uma taça de vinho tinto e tomou a goles modestos enquanto preparava com pouca destreza a simples refeição.
            Antes de começar a comer tentou novamente ir ao telefone. Sean não atendia, Paul estava viajando com a nova esposa, Samuel aparentemente não se encontrava na cidade, Evelyn estava sumida, bem como Miranda já havia um bom tempo e Lucy provavelmente tinha algum jantar da alta sociedade ou coisa do gênero. Iria mesmo comer sozinho. Assim sendo, James fez sua ceia simples e resolveu sair para caminhar pela cidade, o ar no apartamento simplesmente não estava aconchegante como normalmente era.
            Saiu caminhando pelas ruas, passou em frente a uma loja de eletrônicos, um jornal em edição especial falava sobre um roubo de banco em Manhattan, em pleno dia de Natal. James pensou consigo: “Mas que bela porcaria de espírito natalino”. Seguiu em frente caminhando com passadas lentas, olhando para as ruas belamente enfeitadas, e acabou se distraindo do trajeto que tomara, deixou que sua mente escolhesse o caminho no modo automático. Acabou parando em frente à Catedral de St. Patrick, estava em plena 5ª Avenida. Incrível como geralmente dava pouca atenção àquela bela peça arquitetônica bem no meio de Manhattan. Ficou olhando para a igreja por um longo tempo, suas torres que chegavam a 100m de altura, no estilo gótico, muito bonitas. A fachada se destacava também, tanto pela arquitetura, com uma rosácea clássica do estilo gótico, como pelos enfeites natalinos. Era de fato uma bela construção, possuía uma nave muito grande, com um colateral de cada lado, além de várias colunas também no estilo gótico, podia ver as portas abertas com uma movimentação intensa devido à Missa de Natal a ser realizada naquela noite.
            James ficou ali, parado, boquiaberto por muito tempo, até que alguém falando ao seu lado fez com que perdesse a concentração:
            - É realmente uma linda igreja não? E fica mais linda ainda na época de Natal. Acho que tudo fica um pouco mais bonito na época de Natal.
            James respondeu, sem tirar os olhos da igreja – Concordo quanto à construção, não sei quanto ao Natal, acho que as pessoas só querem mais uma razão para consumir, não que eu ache que deva ser tido como algo especial, sou ateu, então não vejo nem a razão consumista e nem a razão sentimental e espiritual da data.
            - É mesmo, meu filho? Que pena, e o que faz então aqui em frente à igreja na noite de Natal?
            James ficou interessado ao ser chamado de “meu filho” e acabou olhando para o lado. Viu então um homem com mais ou menos 1,70cm de altura, cabelos da mesma cor da neve que ainda se encontrava nas ruas, mas já havia parado de cair do céu, um sorriso no rosto e as roupas eclesiásticas típicas de um padre. Ele se assustou um pouco e então respondeu – Perdão padre, não disse aquilo em tom de crítica, é só que, vendo tanta coisa que aconteceu e tem acontecido nesse mundo, nunca fui uma pessoa de fé forte, entende?
            - Não se preocupe, não levo esse tipo de comentário para o lado pessoal, e também, o que seria de nós sem o livre arbítrio não é? Mas repito a pergunta, o que faz então na frente de uma igreja na noite de Natal?
            - Não sei, me deixei levar pelas ruas sem um destino específico, acabei parando aqui. Estranho não?
            - Ora, o que você chama de estranho eu deveria chamar de “divina providência”, não é mesmo? – inquiriu o padre com um risinho brincalhão.
            - Sabe, meu filho, eu entendo a sua pouca fé, entendo mesmo. Hoje em dia é fácil não acreditar nas coisas, acreditar somente no visível, convenhamos, a própria mídia desvia de forma muito forte o significado verdadeiro do Natal. Francamente, a própria igreja já o fez, hoje em dia eu sei que já é de conhecimento comum a forma com que a data foi tirada de um antigo festival pagão egípcio com o intuito de cristianizar povos chamados de bárbaros. – falou o padre, sempre com calma.
            James pareceu meio atônito – Nossa, é a primeira vez que eu vejo um padre falando assim.
            - Esperava o que? Que eu mandasse que o queimassem por não crer nas mesmas coisas que eu? Não somos tão maus assim, meu amigo. Bem, ao menos não mais.
            - Mas vendo você assim, sozinho nesse dia tão especial, me pergunto: será que não seria melhor crer em alguma coisa do que passar como um cético por esse mundo, vendo as coisas sempre pelo lado de fora, por que não entrar lá dentro e participar junto com outras pessoas da celebração?
            - Confesso que tem faz um pouco de sentido, ainda assim, sempre que penso nisso, vejo que não é para mim, tenho ideias muito, diferentes.
            - Entendo, mas tudo bem, por favor, não pense que estou tentando convertê-lo ou algo assim, só quero deixar claro meu ponto. Independente do significado que cada um dá ao Natal, acredito que se o mesmo for positivo, bom, então a data cumpriu sua missão. Se você crê em Deus, Alá, Buda, Extraterrestres, em você mesmo, isso não importa, o que importa é que é uma época de se pensar na bondade e em se fazer a bondade. Mesmo que tenha seu lado consumista, eu sei que tem, e forte, pense em como não seria bom que, mesmo que por apenas um dia todos os 7 bilhões de pessoas nesse mundão não fizessem uma ação boa. Acho que 7 bilhões de ações boas é um número expressivo, mesmo que por um só dia.
            James parecia novamente encantado, agora não com a estrutura arquitetônica na sua frente, mas com as palavras proferidas por aquele velho senhor – Realmente, não havia pensado nas coisas por esse lado, acho que não ando acreditando na bondade ultimamente também, pra falar a verdade ando acreditando em muito pouca coisa.
            - Pois então, meu amigo, quem sabe não é uma boa hora pra botar suas crenças em prática. – falou o padre, ainda com o sorriso no rosto – Bom, mas agora preciso deixar de incomodá-lo, sabe como é, vou exercitar um pouco a minha crença. Espero que tenha um bom Natal, meu amigo, e que encontre a sua, onde quer que ela esteja.
            - Obrigado. – respondeu James, enquanto o padre se dirigia para dentro da igreja.
            Em seguida seguiu seu caminho, logo em frente viu uma senhora carregando enormes sacolas para dentro de uma casa, com a ajuda de um menino. A senhora agradeceu a ajuda e o menino saiu correndo alegre em direção a outra casa, que era a sua.
            James seguiu mais algumas quadras e foi parar no “Dead Poet”, o pequeno bar estava vazio, apenas um casal em uma mesa e um velho barbudo no balcão. Além deles, Miles o Barman, limpava alguns copos, aparentemente não por necessidade, mas por costume e para ter algo para fazer.
            - E aí, Miles, como vai? – inquiriu James.
            - Vou bem, meu amigo, sentindo um pouco de falta da família, mas amanhã passo o dia em casa, e você?
            - Bem também, tive uma noite boa até agora.
            - E então, pretende beber para esquecer a solidão do feriado como de costume?
            - Não, Miles, dessa vez não, pegue dois copos, sirva uma dose pra você também, hoje é dia de comemorar.
            - Nossa, mas comemorar o que meu amigo?
            - Não sei exatamente ainda, Miles, mas acredite em mim ... Feliz Natal pra você, meu amigo!

João Carlos Radünz Neto – 24/12/2012 – 00:26

9 de novembro de 2011

Dias de Esperança ...



            James, Sean e Samuel conversavam ao redor da fogueira feita em uma pequena área mais baixa perto da estrada. O fogo crepitava vez ou outra, em intervalos cadenciados e criava um certo tom de monotonia para o assunto. Os três amigos se encontravam deitados cada um em seu colchonete e usavam as capas de chuva como cobertor contra o frio e o vento. Não que o clima se mostrasse muito ruim, mas sabia que durante as próximas horas da madrugada a tendência era a de piorar. Acima do fogo uma chaleira esquentando a água que seria usada para misturar a pouca janta que haviam conseguido organizar. Alguns legumes, pouca quantidade de tomates secos que haviam trazido para a viagem e um punhado de ervas para temperar a água e dar um pouco mais de sabor. Sean havia conseguido pechinchar algumas batatas na pequena venda do último posto que haviam passado. A chance de arranjar um hotel para passar a noite era nula, pelo menos com os poucos trocados que cada um tinha no bolso e que seriam necessários para a volta para casa. Nunca os três amigos haviam se encontrado numa situação tão desestimulante e desesperadora como aquela.
            A conversa rodava em torno das possibilidades para a viagem do próximo dia e também os planos para arranjar algum dinheiro que pagasse pelo menos a gasolina. Talvez encontrar algum caroneiro com possibilidade de dividir a conta do posto pelo menos até a próxima cidade. Em alguns minutos a comida ficaria pronta, o assunto foi morrendo aos poucos, Sam esticou o braço e pegou seu violão, dedilhou alguns acordes, como se entrando em um transe do qual não sairia tão cedo. Sean acendeu um cigarro, a cada tragada soltava a fumaça com baforadas lentas e circulares enquanto olhava para o céu limpo e estrelado que indicava que o próximo dia seria novamente quente e sem possibilidade de chover. James tomava goles pequenos de sua garrafa de tequila, talvez aquilo pudesse diminuir a fome que ele já estava desde a última refeição, que não havia sido grande coisa.
            Estavam bem próximos à interestadual. Podiam ver e ouvir os caminhões que passavam vez ou outra pela estrada. Pensaram em acampar mais longe, mas não quiseram arriscar ir com o velho carro mais adentro no deserto. A areia podia fazer um belo estrago naquela banheira, sem contar a possibilidade de atolarem na areia solta. Não, o carro não se moveria mais um milímetro sequer para longe do asfalto. A missão foi então achar algum local abaixo do nível da estrada de modo a evitar o vento forte da noite que pudesse incomodar os três. Aquela viagem havia começado como uma missão de resgate. Sean estava preso, havia feito maus negócios e se encontrava impossibilitado de pagar trezentos dólares de fiança para sair da cadeia do condado de Harris. Ligou para James, esse também não se encontrava numa boa situação. Chamou Samuel e se deslocaram até o interior do Texas para tentar salvar o amigo. A fiança foi paga, mas nenhum deles tinha muito mais de reserva para a volta, além disso, a previsão era ruim já que Sean se encontrava desempregado, Samuel não possuía nenhum emprego fixo, tirando as poucas participações que fazia nos bares de quinta tocando com alguns possíveis “futuro expoente do jazz”. Caramba, pensava James, não existem expoentes do jazz, o jazz já morreu, qualquer novo músico jazzista já nasce fadado a fracassar. O próprio James não se encontrava em uma situação melhor. Há quase seis meses sem receber qualquer cheque de royalties por nenhuma publicação. Seu último livro de contos havia sido considerado um fiasco pela crítica que esperava algumas boas histórias. A verdade é que desde seu único livro de real sucesso não havia conseguido engatar nenhuma obra aceitável, muito menos por ele mesmo que era bastante autocrítico.  E a situação era essa, sem dinheiro, tendo que acampar durante a noite, e sem boas expectativas para quando chegassem em casa. Sean nem mesmo tinha uma casa para chegar.
            Alguns minutos de silêncio se passaram até que um casal passou por perto, caminhando no acostamento da interestadual. Carregavam algumas sacolas e o homem trazia ao lado de si uma bicicleta velha e enferrujada, em cima do bagageiro uma caixa de plástico, dessas que se usa para transportar legumes para os supermercados. Dentro dela uma menina de uns três ou quatro anos de idade. Cabelos castanho claros e encaracolados, a pele cor de caramelo. Os três tinham a pele assim na verdade. Eram visivelmente mexicanos, o homem era magro, com as maçãs do rosto salientes, o cabelo separado no meio, um pouco sujo, mas apesar do cansaço visível, trazia um sorriso infantil, quase ingênuo no rosto, como se tivesse a certeza que, apesar de quaisquer problemas, no fim tudo se resolveria. A mulher tinha o cabelo castanho claro, liso, amarrado em uma longa trança às costas. Aparentava ser bonita, mas era difícil dizer tal era a situação de desespero que parecia se encontrar. Independente disso seguia o marido carregando uma sacola grande nas costas. A menininha dentro da caixa olhava para os lados com os enormes olhos negros, com uma curiosidade invejável e uma chupeta na boca. Tinha olhos plácidos e revigorantes. Vieram em direção ao nosso pequeno acampamento.
            - Hola, amigos! – disse o homem acenando com a mão – Tudo bem?
            - Alto lá, o que querem com a gente? – respondeu Sean, já se levantando do seu lugar.
            Era fato que os tempos não eram mais como antigamente, e era difícil confiar em pessoas se aproximando no meio da madrugada numa autoestrada cheia de caminhões. Mesmo que essas pessoas fossem uma família de pobres mexicanos que provavelmente queria alguma direção ou algo assim. O homem levantou os braços como que em sinal de paz e disse:
            - Calma amigo, queremos apenas saber se podem nos dar um pouco da sua água quente para fazermos nosso jantar.
            James levantou de onde estava e se juntou ao assunto.
            - Não teríamos problema, mas a única água potável que temos sobrando é a que está naquela chaleira. Pensávamos em usar ela para nossa própria janta. – comentou James, com uma certa vergonha ao se referir aquela pobre sopa como uma janta.
            - Hmmm. Entendo amigo, mas parece que não vai ser uma janta muito farta. – comentou o mexicano, não de forma sarcástica, mas com uma leve ponta de pena no tom da voz – Quem sabe não podemos nos juntar e dividir um pouco do que temos?
            Sean abriu um sorriso e olhou para James, logo após encarou o homem sem tentar esconder o misto de desespero e felicidade e disse:
            - Diabos, ‘chicano, agora você falou minha língua. Cheguem mais.
            O homem se apresentou como Miguel Jimenez, a esposa se chamava Úrsula e a pequenina tinha o nome de Esperanza. James não conseguiu deixar de pensar na ironia daquele nome.
            Feitas as apresentações e após Samuel se juntar ao grupo, Miguel contou rapidamente sua história. Era natural de Tijuana, mas por muitos anos tentou a travessia para os Estados Unidos de diversas formas. Há quatro anos finalmente conseguiu chegar lá. Era um clandestino na Califórnia. Na cidade dos anjos. Logo que chegou foi recebido na casa de um velho conhecido de seu pai. O pai e esse amigo haviam trabalhado como mineradores quando eram jovens, o homem devia sua passagem e sua vida ao pai de Miguel. Tinha essa dívida com o garoto. Úrsula era filha do homem e o resto da história era de se imaginar. Amor, sonhos, felicidade curta e então um belo chute na cara dado pela realidade. Miguel trabalhava no que podia. Onde precisavam de mão-de-obra barata, lá estava ele e o exército de conterrâneos que trabalhavam fazendo de tudo por algum pouco dinheiro. A garotinha nasceu um ano depois de sua chegada ao país, e a despeito do nome, o emprego estava cada vez rendendo menos. Miguel não desistiu. Preparou suas coisas, juntou a família e resolveu tentar a sorte indo fugindo da costa oeste. “O clima não é tão bom, mas a concorrência há de ser menor”, disse ele à mulher numa noite de outono. Porém ficou trancado no Texas onde não conseguiu avançar muito mais, e ali estavam eles, há um mês já sendo praticamente explorados por um desses novos magnatas do petróleo que pagavam um salário de fome e mantinham empregados até que os mesmos não pudesse mais aguentar o trabalho. Miguel trabalhava sem parar coma família, e à noite caminhava aproximadamente oito quilômetros na direção da cidade vizinha, no meio do caminho ficava o que parecia ser um parque de trailers, porém havia nele uma porção de casinhas de um cômodo, e um banheiro comunal. Nas casinhas se via sempre um bando de mexicanos ou outros imigrantes que haviam tentado a sorte no país atrás do sonho americano e deram com os burros n’água. A verdade é que era exatamente disso que se tratava: sorte. James pensou consigo que, latinos nos Estados Unidos só conseguiam dinheiro mesmo quando viravam boxeadores ou bons jogadores de baseball, e as vezes nem assim. Era fácil ser absorvido pelo crime e etc. Mas gostava de acreditar que Miguel não tinha esse tipo de índole.
            À rala sopa dos três amigos, Miguel juntou algumas latas de feijão conservado que possuía, alguns pedaços de queijo e um pouco de água para beber que ainda tinha. A janta tomou pelo menos alguma semelhança ao que pode se chamar de refeição.
            Apesar de tudo, Miguel e Úrsula possuíam um sorriso contente no rosto quando falavam dos planos para o futuro. Miguel tinha forte crença de que as coisas iriam dar certo, melhorar. Foi com os olhos marejados que ele confessou que por vezes tinha precisado misturar um pouco de aguardente com o leite da filha para que adormecesse e parasse de chorar a noite. James engoliu em seco, tinha certeza que os amigos também. Não podia acreditar na esperança que nutria aquele homem a sua frente. A fibra que mantinha no corpo magro e com as maçãs do rosto saltando. Os braços desgastados do trabalho e da vida, as mãos com muitos calos. Porém ali, sorrindo e comendo o que tinha como se fosse a melhor refeição do mundo. Não tinha como não sentir uma enorme admiração pela força de vontade daquele pobre homem. Apenas mais um entre tantos desses “cidadãos de papelão” que vivem à margem da sociedade. Que servem como massa e combustível para alimentar riquezas e modo de vida de tão poucos que são de fato agraciados pelas maravilhas do capital. Esse homem, dentre tantas as possibilidades, foi quem parou ao lado deles e estendeu o pouquíssimo que tinha, sem nem ligar que eram homens brancos, americanos, e que possivelmente tinham tido todas as chances nessa vida de terem mais conforto do que ele. Chances. James sentiu uma pontada de tristeza ao pensar nisso, que uma grande maioria tinha essas chances podadas, quebradas, pulverizadas desde o berço pela sociedade, essas chances e oportunidades que a vida, ao menos em sua essência, teria por regra dar a todos, como iguais.
            A janta passou. Miguel e a família se despediram ainda com o sorriso no rosto e uma frase de boa sorte nos lábios. James e os amigos se entreolharam. Todos entendiam. Não era preciso palavras. Haviam dividido não apenas a pouca comida que tinham naquela meia hora ali, haviam somado esperanças. Haviam de fato vivido como se deve viver. Seis seres humanos, compartilhando o que tinham naquele momento, comida, sorrisos e uma conversa descontraída. Haviam sido salvos por Miguel, e queriam acreditar que tinham ao menos ajudado um pouco aquele que se mostrou tão bom para eles. “Ao povo o que é do povo”. James sentia o sono vindo aos poucos. Conseguia ver Miguel chegando à costa leste, encontrando algum emprego que lhe desse condições de viver melhor, e quem sabe até salvar a noite e a janta de mais algum caroneiro ou viajante por essas estradas da vida. E sobre o futuro, ele apenas espera que dias melhores viesse, que oportunidades mais justas virassem realidade, dias melhores para Esperanza, dias de esperança.

4 de outubro de 2011

Tê Vê



Desliga a TV
O progrma, acaba com você
Pegue o microscópio, abra sua mente
De perto a vida, é bem diferente

Horas fechadas
Horário comercial
Virando madrugadas
Letargia cerebral

Controle  remoto
Controla sua ilusão
Controla essa vida
Sem razão

Horas inteiras
Horário comercial
Sem "eiras nem beiras"
Da desgraça ao carnaval

Um minuto de silencio
Pediu o presidente
Programação independente
Dependente de programação

Desliga a TV
Tenta ser apenas você
Pegue o telescópio, aumente sua visão
Pegue suas idéias, da mente ao coração

10 de julho de 2011

Noite ...


As luzes da cidade iluminam essas ruas
Na praça as folhas dançam ao som do violão
Tecendo idéias...

Na mente lembranças que escorrem no calor
Mochila lotada de idéias, de planos
Os dias as semanas e os anos...

Abrigo na noite sem fim
Buscando sentido na trilha do lago
Encontro o passado ... parado na esquina da dor com a desilusão

Me prega um susto
E eu penso que a luz já não é o bastante
Já não espanta nem espana a escuridão...

11 de junho de 2011

Ins-Tinto ...


                Estávamos lá, Sam e eu. Sentados nos tamboretes do bar após mais uma noite de apresentação. Sim, tocávamos em troca de uns trocados no bar de um amigo de Sam. Fazíamos geralmente a abertura para alguma banda mais conhecida na cidade. No repertório, o bom e velho blues, e mais todas as outras músicas que a coordenação de Sam permitisse, bem como a minha voz calejada e o pouco que eu conseguia ainda soprar na harmônica. Aquele dia tinha sido legal, ouvir as poucas pessoas cantando junto, os amigos fazendo festa, mesmo que alcoolizados. Me sentia bem bicando minha água mineral depois do mini-show.
                - Certo, Jamie, fizemos nossa parte. – disse Sam enquanto tomava sua água.
                - É, bela parte. Agora é hora dos profissionais, já tá acumulando gente pra caramba por aqui. – respondi olhando para os lados como se para ter um panorama geral.
                O som da outra banda começou no outro ambiente, ouvíamos apenas o barulho abafado e o canto que vinha das pessoas que acompanhavam o rock. Algumas pessoas se mantinham ali no bar, onde era mais sossegado. A copa era um bom lugar, arredondado, nós estávamos na ponta da esquerda, de modo que ficávamos exatamente de frente para os tamboretes da ponta direita. Num deles se encontrava uma bela moça. Acho que tinha por volta de uns 30 anos, talvez um pouco menos, sempre fui terrível pra fisionomias. Notei que Sam também havia visto ela. Olhava como se enfeitiçado. A moça tinha olhos castanho claros, bem claros mesmo, cor de mel. Na volta tinha um lápis bastante escuro, o que dava ao seu olhar uma característica marcante e ao mesmo tempo lúgubre. Não que fosse triste, mas carregava um certo peso. A pele era extremamente alva, dava a idéia de ser extremamente sedosa. Os cabelos eram morenos e muito finos, passavam um pouco da linha dos ombros, mas não muito mais do que isso. Um lado caía levemente sobre o bochecha direita e o outro se mantinha preso atrás da orelha. A boca era bastante rosada e não parecia estar usando batom, apenas um brilho que dava a aparência de estar constantemente molhada e chamativa. Tinha um porte magro, o que fazia com que não tivesse muitas curvas, mas combinava bastante com o “desenho completo”. Sumarizando rapidamente, era linda.
                Bebia algum drink trabalhado. Não faço idéia de qual fosse. Sam notou que eu a olhava e escrevia em meu caderninho. Chamou o barman e disse:
- Milles, traz uma garrafa daquele vinho do porto e duas taças pra mim e pro Jamie.
Milles, de pronto assentiu e pegou a garrafa de vinho do porto. Colocou calmamente duas taças no balcão e então serviu metade delas com o líquido.
- Já vi que gostaram da garota, não tiram o olho dela não é mesmo amigos? - denunciou Milles com um sorriso meio fanfarrão no rosto.
- Linda, nunca tinha visto ela por aqui, vem com frequência? - inquiriu Sam
- Pelo menos uma vez por mês ela vem, em geral fica só no bar, algumas vezes vi ela com alguns amigos e amigas, mas quase sempre sozinha. Senta ali, bebe alguns drinks e então vai embora sem deixar muitos rastros.
- Bela menina hein, Jamie? - me falou Sam, enquanto me dava um cutucão.
- Se é, não entendo como não a vi entrar. - dei uma risada e uma bicada no meu vinho.
- Por que não vai lá falar com ela?
- De jeito nenhum. Ela me faz lembrar uma mulher que Hemingway vê em um de seus livros. Ele está em um café em Paris e vê entrar uma mulher lindíssima, trocam olhares, talvez até pensamentos, mas no fim das contas ele ou ela vai embora, não lembro qual agora, e isso é tudo.
- Hemingway não se matou?
- Touchê!
Derrubamos até metade da garrafa. A mulher visivelmente olhava para o nosso lado do bar vez e outra, mas como sempre fui muito desligado não sabia dizer se era pra mim ou pro Sam. Comecei a sentir um enorme desconforto com a situação. Até que terminei minha terceira taça e dei um tapinha no ombro de Sam.
- Vou tomar meu rumo, chega de vinho por hoje meu amigo, amanhã o dia é longo e eu pretendo trabalhar. Nos encontramos a noite e ligamos pro Sean?
- Certo, certo. Cuidado com a direção, já bebeu três taças.
- O Impala já conhece o caminho de casa. - retorqui sorrindo.
Saí do bar acenando para Milles e ainda dei uma olhadela para a mulher. Sam seguiu lá. Cheguei em meu apartamento mais ou menos uns 20 minutos depois. Era relativamente perto, mas eu dirigia a 30 por hora por conta do álcool. Deitei no sofá e liguei a televisão. Além do canal de vendas não tinha nada mais interessante para assistir. Perto das 3 da manhã começou a passar um filme do Hitchcock e eu resolvi assistir. Acabei pegando no sono na metade. Acordei de susto no outro dia por volta das 9 da manhã. Era o telefone. Estiquei o braço e levei ele ao ouvido.
- Alô?!
- E aí, Jamie, como foi a noite?
- Curta...
- Eu sei eu sei, é cedo mas eu precisava te ligar.
- E por que?
- Bom era só pra dizer uma coisa.
- Diga.
- Era pra dizer que o Hemingway não tava com nada.
Dei uma enorme gargalhada - De fato, Sam. Acho que muitas vezes ele não tava, mas lembre-se que ele era casado. Nos vemos a noite?
- É claro, e ainda bem que eu não me casei ainda não é?
- Fato.
- Um abraço cara!
- Abraço, Sam. Não vá se perder no caminho, e mande um oi pra morena dos olhos de mel.
Nunca mais vi o Sam com a morena, nem ele me contou o que de fato aconteceu. Mas mantenho os olhos de mel meio lúgubres por causa da maquiagem na memória. Talvez o Hemingway tenha errado mesmo, ou talvez ele tenha visto algo de estranho naquele olhar. Talvez as vezes o que nos faz ficar congelados sem ação é algo que captamos numa frequência inumana. Aquilo que nos animais se chama instinto. Não sei, acho que Sam acabou dando com os burros n’água. Nunca toquei no assunto, não era da minha conta. O fato é que naquela noite saímos com Sean e a morena não foi mencionada. Talvez Hemingway ou até Zola, mas não a morena. Talvez o mel daqueles olhos não fosse tão doce, e aquele olhar pesado tivesse sua razão de ser.

21 de maio de 2011

Conexão ...


         Eu me encontrava ali, parado na frente do apartamento. Uma garoa fina de outono tocava suavemente o vidro frontal do carro. A luz do 202 apagou, 2 minutos depois Miranda já estava abrindo a porta, carregando apenas uma mochila dessas de camping. Correu até o carro e jogou sua mochila no porta-malas. Entrou e sentou no banco do carona e de pronto já colocou uma música no toca fitas. Depois disso me deu um beijo de leve e gritou, “Vamos nessa!”.
         Eu me perguntava de onde vinha toda aquela energia de Miranda. Ela era semelhante a sua irmã Evelyn, mas ao mesmo tempo a sensação de estar na presença de cada uma era de água e vinho. Eram semelhantes em toda suas diferenças. A energia contagiante era a mesma, porém Miranda emanava uma sensação de segurança, ao menos assim eu pensava, e conforto, vindos apesar de toda sua loucura. Já Evelyn mantinha aquela proximidade distante, e eu sempre me sentia como que pisando em ovos. Talvez eu tivesse enlouquecido por estar me metendo com a Miranda, mas eu estava sendo impulsivo pela primeira vez na vida e sentia um medo e um suador que não eram comuns a mim. De certo eu estava finalmente me tornando maduro, ou então tinha enlouquecido de vez.
         A questão é que eu precisava de um tema para meus escritos e eu não tinha mais inspiração. Comentei isso numa noite entre os amigos e Miranda me disse que estava se preparando para viver uns tempos em uma comunidade auto-suficiente na costa oeste. A idéia pareceu tentadora e assustadora, e logo que ela perguntou, com toda simplicidade do mundo, se eu queria me juntar, aceitei. De modo que, ali nos encontrávamos, com poucos mantimentos que juntamos e dinheiro apenas para a gasolina até o Rancho Black Bear. Aquele rancho se encontrava lá na costa oeste desde a década de 60, e por lá centenas de pessoas já haviam passado em busca de uma vida mais em comunhão com a natureza ou então com idéias diferentes sobre como o funcionamento da sociedade deveria ser. Eu havia visto nisso uma boa oportunidade de refletir um pouco, ao mesmo tempo em que conheceria pessoas novas e inspiradoras para minhas histórias malucas. Miranda via naquilo quase uma nova seita religiosa, o que me assustava um pouco, mas Miranda sempre fora assim, astuta e decidida, e talvez um pouco instável.
         Zarpamos no início da noite e tínhamos algumas horas de viagem pela frente até a primeira parada, eu não esperava por uma viagem tediosa e sem incidentes, mas qual não foi minha surpresa quando chegamos lá sãos e salvos, na data esperada e sem problemas durante o percurso.

***

         Logo que chegamos um cowboy com cabelo e barba longos veio nos receber, se identificou como Wade e Miranda parecia conhecê-lo, nos apresentou rapidamente e então Wade começou a dar um panorama geral de como as coisas funcionavam no rancho: era um regime totalmente comunal, cada um ajudava com o que soubesse fazer, moravam todos na mesma casa, dividindo as roupas que ficavam em um local comum, não haviam quartos específicos e o grupo não encorajava casais, apesar de não ser contra a existência dos mesmos. Notei um certo sarcasmo por parte dele quando falou isso, já que certamente ele notara que éramos um casal por nosso modo de nos portar. Wade me pareceu de inicio um cara canastrão, lembrava um pouco o Sean, mas a malícia dele parecia um pouco venenosa.
         Acomodamos então as roupas que trouxemos no grande armário comunal e logo nos juntamos a todos perto da lareira para curtir um chá. Havíamos chegado atrasados para a janta, mas não havia problema porque paramos em um bar de beira de estrada no fim da tarde onde comi uma torrada e tomei um café forte com bastante açúcar. Seria meu último café pelo próximo mês, então me certifiquei de que fosse bem degustado. Tive alguns papos bem legais com pessoas diferentes naquela noite. Conheci um ex-advogado de Los Angeles que havia decidido largar tudo em busca de uma vida mais em paz, um senhor aposentado, ex-militar, que sentia que precisava se castigar por todas as mortes que já havia causado e também um casal de Seattle que tinha uma banda de rock e decidiu se isolar em Black Bear para tentar se afastar das drogas. Mas dentre todos que conheci, definitivamente a pessoa mais interessante, foi uma mulher com cabelos escuros que não sorria muito e parecia falar apenas com algumas pessoas. Ela me chamou atenção primeiramente por sua beleza, mas depois pela estranheza de sua presença naquele lugar, fiquei extremamente curioso para saber por que estava ali, quais suas razões. Nisso me levantei e me sentei no chão ao seu lado, em um grosso tapete de lã de ovelha que ficava perto da lareira.
         - E então, qual a sua história? Por que está aqui? - perguntei ao me sentar.
         Ela me olhou rapidamente e então deu mais um gole do seu chá. Após respondeu:
         - Acho que a mesma de todos, vida estressante, precisava de um tempo, curiosidade, talvez minhas razões sejam uma mescla das de todos os outros. Ou talvez eu simplesmente não tenha razão nenhuma.
         - Me parece que eu vejo aqui uma pessoa bem confusa quanto a si mesma. Me chamo James, mas em geral me chamam de Jamie.
         - Eu me chamo Amy, e não, não sou tão confusa, só não tenho uma razão bem clara para estar aqui, ou não quero partilhar ela. Minha vida sempre foi segura, financeiramente, sempre tive facilidade com relacionamentos, e ultimamente não tinha grandes preocupações. Mas simplesmente tive vontade de vir.
         - Assim, do nada?
         - Isso mesmo. - disse ela com um sorriso no rosto pela primeira vez - E você. Já que me julgou tanto, por que VOCÊ está aqui?
         Parei um pouco e então resolvi ser bem sincero - Pra ser sincero eu nem pensava em vir, fui meio que arrastado por minha namorada, e também porque pensei que podia me render um pouco de inspiração pra minhas histórias.
         - Ótimo, o cara com a razão mais egoísta e inútil de vir pra cá tava me julgando, típico. Acho que descobri na verdade a razão de vir, queria me afastar de pessoas como você.
         - Hey, hey. Não precisa se apressar tanto em me julgar, não sou tão egoísta como você tá pintando. É verdade que vim talvez pelas razões erradas, mas independente disso o lugar me pareceu bom, pretendo me entregar.
         - HÁ HÁ HÁ! - Amy soltou uma grande gargalhada - Nossa, mas que cara mais sério. - assim ela se levantou e me esticou a mão - Vem, vem comigo que quero te mostrar uma coisa legal.
         Estiquei a mão, meio atônito pelas atitudes estranhas dela, dei uma olhada para Miranda, ela conversava entretidamente com Wade, e apenas me deu um sorriso como que dizendo “divirta-se”. Seguimos para a rua e então paramos alguns metros à frente, na beira de um lago lindo e extremamente calmo. A lua cheia refletia perfeitamente naquele lago, como um espelho sem nenhum arranhão. Amy então quebrou o silêncio:
         - Sabe a velha metáfora do lago que parece paralisado em sua superfície, mas por baixo é um turbilhão de movimento de peixes e areia e outras coisas? Pois então, essa sou eu, essa é minha grande razão de estar aqui, quero a calmaria lá embaixo também, ou então o turbilhão na superfície, não agüento mais essas duas forças dentro de mim, me rasgando ao meio e me disputando a cada segundo. Nem que eu não possa mais refletir essa lua tão bonita, quero ser inteira e não duas metades.
         Olhei para as lágrimas em seus olhos enquanto falava, me perguntava onde havia parado aquela mulher tão forte de minutos atrás. Ela agora parecia uma menina assustada e aos poucos foi se escorando em meu peito em busca de um pouco de amparo.
         - Se você usa o lago como metáfora, então eu uso o oceano, eu sou como aquele mar revolto, sou apenas o resultado de todos os rios e córregos que despejam suas águas em mim. O James por si só não é ninguém, eu preciso de algo desaguando em mim constantemente. Por isso disse que buscava inspiração aqui. Não histórias insípidas e sem alma, mas almas verdadeiras que possam comigo trocar, idéias, ideologias e talvez sorrisos e lágrimas. - me peguei, enquanto falava, acariciando seus cabelos.
         - Eu ouço seu coração acelerado. - me disse ela como se fosse realmente uma criança ouvindo aquelas batidas pela primeira vez - Sinto tanta calma com esse som, sinto que conheço você há décadas, como se fôssemos velhos amigos.
         Não sei quanto tempo ficamos ainda ali parados, na beira do lado, abraçados, sem dizer palavra nenhuma, apenas ouvindo um o coração do outro. Uma conexão que até hoje não consigo entender exatamente. Então Segui novamente os passos de Amy.
         Quando entramos na casa a maioria das pessoas já estavam deitadas em algum quarto. Passamos por alguns deles e vimos alguns casais formados. "Quando subimos para o segundo andar pude ver, do outro lado do corredor, a silhueta de Wade e Miranda, ambos estavam deitados na mesma cama, sem roupas, e pareciam não ligar para quem quer que os notasse. Apesar de todos os sentimentos que passavam por minha cabeça naquele momento não pude deixar de sentir que aquela cena era bela."*
         Entramos em um quarto, nem mesmo ligamos as luzes, não havia necessidade. Tiramos as roupas mais pesadas e deitamos embaixo de um cobertor de pena de pato. Era simples, como se não precisássemos falar nada. Dei um beijo na testa de Amy e então ela se deitou com a cabeça colada em meu peito.
         - Vou dormir aqui, ouvindo seu coração. Boa noite. - disse ela já com a voz cansada de sono.
         - Boa noite. - respondi, afagando levemente seus cabelos.
         Me levantei no outro dia em silencio, dei mais um beijo em sua testa antes de me vestir e sair do quarto. Miranda ainda se encontrava deitada com Wade no quarto ao fim do corredor. Fui até meu carro e dei a partida. Deixei o Rancho depois de apenas uma noite. Se era inspiração que eu buscava eu havia encontrado, sentia que minha conexão com Amy seria para toda a vida. Mesmo que eu nem mesmo soubesse seu último nome ou seu telefone. Era para ser assim, eu sabia e ela também. Não me senti mal, nem culpado, sabia que ela entenderia perfeitamente, sabia que me lembraria dela sempre, e sabia que o tamborilar do meu coração iria embalar seu sono em todas as noites em que se sentisse solitária.


* Cena retirada do documentário "Commune", de 2005.

7 de maio de 2011

“Ridin’ the blues away ...”


            A cerveja na garrafa de Sam balançava descontroladamente enquanto cruzávamos uma estrada de terra esburacada em algum ponto do interior de um estadinho do sul. Mal havia luz para se enxergar a estrada e eu pisava até o acelerador encostar na lata. O motor berrava como se pedisse um pouco de descanso, mas nós não tínhamos idéia de parar por toda noite. O Impala ia numa média de 110km por hora e eu via o sorriso no rosto de Sam enquanto Muddy e Sonny Boy tocavam no velho rádio. A qualidade do som era uma porcaria, mas com a quantidade de cerveja que já havíamos consumido era como se estivéssemos na primeira fila ouvindo os próprios, e pudéssemos ver o rosto de Sonny se apertando enquanto soprava com força a harmônica. “GOT MY MOJO WORKING!!!” lascava a mil enquanto as luzes me guiavam e no retrovisor eu só avistava poeira e então a escuridão se fechando.
            - Cara, essa noite vai ser cansativa. Mas se tudo der certo estaremos por lá amanhã pela manhã. E daí é só encontrar um hotel barato e teremos três noites inteiras para curtir tudo que o rock and roll, o blues e o jazz sulista podem nos oferecer. - Sam berrou tentando ultrapassar o som do carro e do rádio.
            - Isso! - berrei e concordei com a cabeça dando uma guinada em uma curva fechada para a direita.
            O carro jogou a traseira e eu puxei o volante todo para a esquerda tentando manter a frente, NA FRENTE. Ouvimos um barulho no banco traseiro e então Sean gritou:
            - DIABOS, James!!! Aprende a dirigir seu pé de chumbo!!! - trovejou ele tentando se acomodar novamente.
            - Pra quem é um aventureiro você parece muito cuidadoso com a estrada essa noite, Sean. E não me chame de James, só me chama assim quem não me conhece. - falei virando a cabeça para trás e me desligando da estrada.
            - Vá pro inferno, Jamie. - gritou ele e se deitou novamente para tentar continuar dormindo.
            Uma dupla começa a tocar no rádio. Não reconheço a voz, parece uma Ella Fitzgerald com a voz mais fina. O banjo grita a um milhão de vibrações por minuto e Sam balança a cabeça incontrolavelmente como se hipnotizado pelo som.
            - Hey, sabe o que diabos está tocando? - perguntei então.
            - Nem idéia, cara. Mas a música é “Two Time Loser”.
            - Bela música. - disse eu.
           - Mais do que isso. Bela e verdadeira. Digna de um verdadeiro artista. Tem coração e espírito.
            - E tem uma bela voz interpretando ela. – completo sorrindo.
            - Isso era a boa música, meu velho.
            A seguir ouvimos o Hooker interpretando Tupelo e eu comentei:
          - Sabia que essa música fala sobre uma enchente que ferrou com várias cidades no Mississipi?
         - Isso é uma droga, esses estados já foram castigados pra caramba, mas seguem se levantando. Parecem até a gente. - falou dando um grande gole da cerveja.
           - HAHAHA!!! - dei uma risada sonora e concordei coma cabeça - De fato, parece mesmo com a gente.
            A estrada se amansa um pouco no próximo trecho e nós conseguimos cruzar uns sessenta quilômetros em trinta e nove minutos cronometrados por um Sam meio bêbado, mas ainda confiável. Era um novo recorde para mim. Paramos para tirar água do joelho perto de uma pequena entrada de propriedade. Havia luzes longe, mas não podíamos ver exatamente a distância exata. Foi um momento meio catártico mijar no escuro total enquanto ouvia ao longe no som do carro o grande BB King tirando as primeiras notas de “How Blue Can You Get”.
            Logo estávamos prontos para seguir viagem, mas antes abri uma garrafa para mim. Bebi rápido o suficiente a metade dela e a coloquei bem segura na parte interna da porta do lado do motorista de modo que poderia usar minhas duas mãos para guiar e eventualmente poderia alcançar ela para um gole que molhasse a garganta.
            - Cara, imagina essas pessoas dessa fazenda. Morando aqui, no meio do absolutamente nada, sem acesso a maioria das coisas que todo mundo tem na cidade. Não consigo deixar de pensar que são mais felizes. Que podem curtir alguns momentos de conversa boa em família antes de dormir. Ouvir uma boa música no rádio. Cara isso é puro, não tem preço. É como uma oração simples. É como tomar água direto da nascente. - comecei a falar sem parar.
          - Concordo. Mas nosso tempo de pureza já se foi, o máximo que podemos fazer hoje é meditar e acreditar que isso vai nos deixar um pouco mais limpos no final do dia. Nossas orações simples não funcionam mais, nossa nascente já secou ou foi poluída. - respondeu Sam com seriedade.
         - Uma oração simples sempre funciona, cara. Ao menos se for verdadeira. - retruquei como que contrariado.
            - Se gosta de acreditar nisso, faça o que é melhor pra você. - Sam completou e deu mais um gole na cerveja.
            “The Clock” com Johnny Ace toca no rádio e eu então dou uma batida no volante, um gole na cerveja e digo:
            - Caramba!!! Isso sim é uma música de amor. Ele interpreta tão bem, e a letra, ahhh a letra, é poesia pura cara. Aquele cara e aquele relógio, esperando o amor da vida voltar. Com aquela certeza de que vão ficar ali sozinhos pra sempre caso isso não aconteça.
            - Acontece as vezes. - respondeu Sam - Já aconteceu comigo, e com você umas boas vezes. Nem preciso começar a citar nomes, preciso?
            - De jeito nenhum, por acaso está vendo algum relógio de parede por aqui hoje? - respondi dando uma gargalhada.
           Sam sorriu também e continuamos acelerando indefinidamente naquela estrada. Sean roncava sonoramente no banco traseiro enrolado em uma velha manta que carregava para todos os lados quando viajávamos durante a noite. E com isso as horas iam se passando e íamos trocando idéias e histórias. Nossas conversas dificilmente duravam mais do que duas ou três trocas de frases, e então o ar era preenchido por uma bela música interpretada por algum artista incrível. Espalhávamos o blues pelos campos do interior, criávamos som onde este não costumava chegar quase nunca. Sentíamos ao mesmo tempo uma pena enorme e uma inveja ainda maior daquelas pessoas que se encontravam ali nos confins da civilização. Quando os primeiros raios já despontavam atrás de nós o carro ainda balançava no ritmo da música e víamos pessoas acordando cedo para ir aos seus empregos ou coisas do gênero. Todos com suas coisas para fazer enquanto nós só queríamos aproveitas alguns dias sem fazer nada a não ser curtir uma boa música em meio à boa companhia.
            Nos aproximamos do nosso destino aproximadamente as 6:30 da manhã. O sol era quente já e pudemos ver os primeiros indícios de prédios mais altos e de uma cidade grande. Conferimos o endereço que nos fora dado e rumamos em direção ao hotel para um descanso merecido. Sean já estava acordado e bicava sua garrafa de whisky da mesma forma que um passarinho toma água aos poucos cedo da manhã. Eu precisava urgentemente de um travesseiro e umas nove horas de sonos ininterrupto.
            Demos o “check-in” no hotel e então fomos para o quarto. Me atirei direto no sofá enquanto Sam e Sean foram para as camas que se encontravam em um canto, separadas com por uma cômoda com um telefone antigo e vermelho. Deitei olhando para o teto e me revirei um pouco sem conseguir pregar o olho. Aparentemente Sam tinha o mesmo problema. Sean já roncava sonoramente em sua cama no canto do quarto, alheio ao resto do mundo. Sam quebrou o silêncio:
            - Não consigo parar de pensar nela, não consigo parar de crer que aquilo que aconteceu é raro e dificilmente vai acontecer de novo. Parece que não dei o devido valor quando devia.
            - Nunca damos eu acho. - disse eu quase automaticamente - Entendo como se sente, é por isso que resolvemos fazer essa viagem não, é? Para deixar que o blues nos contagie, para sermos “levados pelos blues” para longe como diria a canção.
            - É... mas as vezes, só as vezes eu queria dormir com a traquilidade com que o Sean dorme. Caaaara, ele parece inabalável. - comentou Sam.
          - E ele é. É simplesmente o cara mais feliz que conheço. Absolutamente não deixa o cérebro parar nunca, é como estar ligado constantemente no turbo, é como estar de trago vinte e quatro horas por dia. O Sean não é desse mundo, definitivamente.
          Sam então virou para o outro lado e comentou como que querendo terminar o assunto – Acho melhor tentarmos dormir, a noite vai ser longa e provavelmente boa.
            - Certo. - concordei ainda olhando para o teto do apartamento.
       A luz entrava insistentemente pela janela, mesmo com a cortina completamente fechada. Eu pensava naquela voz meio rouca, sonora e bela que não saía da minha cabeça. Lembrava dos movimentos daquele corpo meio desengonçado pela quantidade de álcool ingerido. Daqueles olhos borrados com o lápis escuro no outro dia pela manhã. Eu pensava e aos poucos meus olhos foram se entregando completamente. Gostaria de dormir como Sean, sem pensar, e acordar só à noite, sem me olhar no espelho para questionar absolutamente nada. Seria uma boa noite de fato, por isso o blues é tão belo, porque junta nossa tristeza e transforma em algo criativo, sonoro e belo. Gosto dele, costuma me inspirar. Gosto de escrever como um blues, como se a beleza de seu som, como se a tristeza de suas idéias marcasse as páginas. A noite seria “azul”, e a lua iria estar presente enquanto velhos lobos uivavam, para que as pessoas lá no interior ouvissem e se perguntassem se uivam por felicidade ou por dor.