5 de julho de 2014

O Fantasma de Lorde Duncan Wellington




            Foi em 1903 que Lorde Wellington pisou pela primeira vez no Brasil, a cidade fervia com a explosão cultural da “belle époque” tupiniquim, dessa forma atraía pessoas de todas as partes do mundo, fosse para passeio ou moradia final. Sua vinda para terras ao oeste do Atlântico se deu por pedido de um grande amigo que fez durante a década de 1880, enquanto estudava na França. Foi nesta feita que conheceu o engenheiro brasileiro Francisco Pereira Passos. Os dois se tornaram bons amigos rapidamente, para Pereira Passos aquele homem era um exemplo de civilidade e elegância, assim sendo, não foi surpresa nenhuma quando, durante o início de seu mandato como prefeito da cidade um convite foi enviado ao Lorde para que viesse ao Brasil prestar auxílio durante as grandes reformas urbanas planejadas para a cidade.
            Como moradia recebeu uma casa no centro da cidade, que passava por uma verdadeira revolução, com a destruição de diversas moradias e mudança de uma classe baixa que migrava para os subúrbios. O ambiente era espaçoso, e eram raras as noites em que não havia alguma atividade na casa do dândi. O bom gosto dele era absolutamente encantador para uma nobreza presente na cidade que rodeava a propriedade como mariposas atraídas pela clareza do fogo durante as noites.
            Pequenos recitais, sarais poéticos até altas horas da madrugada, jantares com os mais sortidos pratos. A casa exalava cultura e beleza por todos os seus cômodos, pessoalmente decorados pelo proprietário. Lorde Wellington era o perfeito exemplo de um homem que não havia nascido na nobreza, mas soube se educar e buscar as melhores possibilidades de se tornar um exemplo. Durante todos os seus anos em terras brasileiras sempre foi possível ouvir as belas sinfonias que fugiam das grandes janelas abertas ao se passar na frente da propriedade. O cheiro de pratos magníficos escapando pelas frestas e polvilhando a calçada deixavam os transeuntes extremamente extasiados.
            Durante as duas décadas aquele foi um lugar em que a cultura praticamente se materializava, e tinha seu avatar no grande Lorde Duncan Wellington.
***
            Os anos foram se passando e a propriedade começou a passar pelas mãos de algumas gerações da família, até que foi desapropriada e, eventualmente, ficou abandonada totalmente. Após mais alguns anos ela foi adquirida por um homem de negócios em uma aposta de jogo, sem valor nenhum atual, como um enorme fantasma em meio à cidade, a casa foi mantida no estado que estava e colocada à venda por um preço relativamente baixo dado seu tamanho. Compreensível, ainda assim, já que boa parte dela se encontrava muito mal conservada.
            Foi então que, por um acaso do destino, a família Gomes comprou a propriedade e se instalou finalmente na casa nova. Uma família absolutamente comum, com os gostos dos mais populares, mostrou àqueles velhos cômodos e corredores o que era a música popular, desde o pagode adorado pelo chefe da família, o senhor Adriano Gomes, até o mais puro funk carioca que passava tocando no quarto de sua filha. A cozinha acostumada aos mais variados pratos direto da culinária europeia sentiu pela primeira vez o cheiro de uma feijoada bem brasileira, além é claro da dobradinha famosa da Dona Santana Gomes. Algumas garrafas de vinho da antiga adega do Lorde Weliington ainda se encontravam vivas. Nem foram tocadas pela família gomes, apenas começaram a fazer companhia à semanal garrafa de Velho Barreiro que temperava a caipirinha durante os ótimos churrascos do fim de semana.
            O primeiro mês da família Gomes naquela nova casa foi de adaptação, tanto da família, modificando o lugar para que se adaptasse à sua forma de vida, quanto daquela casa que, quase como um ser vivo, via seus modos e costumes tão fortemente modificados. Foi por volta da quinta semana que então o trabalho de Lorde Wellington começou a se mostrar para os novos habitantes. Durante um churrasco em que estava presente apenas a família, enquanto rolava caipirinha, salsichão e um bom pagode no rádio, algumas poucas interferências puderam ser notadas. Em um estrondo de volume, a máquina, como se possuída, começou a tocar aos berros a 5º sinfonia de Beethoveen. Algumas partes da 9º sinfonia do mesmo autor podiam ser ouvidas na mistura de sons, que vieram a se dissipar com o quarto movimento da 1º sinfonia de Brahms. A família acompanhou àquele “ataque sonoro” absolutamente embasbacada, sem reação alguma. Era algo absolutamente inesperado, porém, qualquer um que conhecesse o finado Lorde Wellington, saberia que ali naqueles sons estavam representadas suas três sinfonias preferidas, criadas por seus dois mais amados compositores.
            Passado a acontecimento do som, os ataques fantasmagóricos seguiram acontecendo. O mais grave deles ocorreu na manhã em que a família foi acordada, as 5 horas, por um grito de terror vindo do quarto de Janaína Gomes. Seu MP3 player surgiu esmagado no tapete, completamente quebrado, localizado ao lado de um busto de mármore do Lorde Wellington que havia ficado guardado no porão da casa. Após isso as manifestações de poltergeist começaram a ficar mais comuns, culminando quando Dona Santana foi atacada por uma cópia de A Volta do Parafuso de Henri James enquanto ela lia sua edição da revista Diário da TV e descobria afinal com quem Luiz Ricardo iria se casar no final da novela. Além de Henry James ser um dos favoritos de Lorde Wellington havia o fato dessa obra em específico tratar sobre a presença de seres do mundo espiritual em uma propriedade.
            O caçula da família, Victor Gomes, não passou despercebido pelo fantasma de Lorde Wellington, e teve seu vídeo game queimado durante um pico de energia. Durante a falta de luz o garoto ainda torceu o pé ao tropeçar em um antigo tabuleiro de xadrez de mármore, que também deveria estar no porão.
            Mais um mês se passou e cada vez mais a família era atacada pelas manifestações culturais de Lorde Wellington. Dois meses depois todos já tinham claro em suas cabeças que havia uma assombração no local, e que ela se intensificava em momentos específicos. Nos churrascos com pagode do fim de semana, durante as tardes de funk a todo volume no quarto de Janaína, e, principalmente, durante a novela das 21h da Globo.
            Houve então uma feita em que o Senhor Adriano resolveu mexer com mais afinco nas coisas guardadas no porão. Descobriu um antigo gramofone com alguns discos. Naquela noite trocou seus planos e ouviu calmamente aquelas melodias por horas. Pela primeira vez em semanas a família teve uma noite sem nenhum incidente sobrenatural.
***
            Com o tempo, os costumes daquela família foram mudando, se adaptando às investidas culturais do fantasma de Lorde Duncan. Adriano Gomes não mais assistia seu futebol aos domingos, ao invés disso geralmente gastava algumas horas assistindo às partidas de pólo, esporte que começou a entender e venerar. Aprendeu a gostar de música clássica, principalmente as sinfonias. Comentava muito durante os almoços de domingo sobre sua nova paixão ao ouvir alguns dos concertos do romantismo do século XIX. E foi devido a um documentário sobre música barroca que o pai da família pode ver pela primeira vez a aparência física do fantasma. Ali estava, sentado no sofá em frente a uma televisão, o poltergeist maravilhado pela visão do quanto aquela caixa mágica do início do século XX havia evoluído tecnologicamente. Após esse encontro é dito que o Sr. Adriano passou muitas vezes a ostentar uma bela bengala com castão na forma da figura de um cavalo. Usava ela em suas caminhadas de domingo, quando ia ao parque e fumava alguns charutos assistindo o festival de flores e pássaros.
            Dona Santana e o caçula, Victor Gomes, também não passaram alheios à influência de Lorde Wellington, adquiriram um gosto refinado pelo melhor da culinária europeia, e eram capazes de transformar qualquer combinação de ingredientes em um belo prato. Janaína, por sua vez, passava dias e dias trancada no quarto devorando livros, dando ênfase naqueles por quem nutria uma grande estima, como Oscar Wilde e Henry James.
            Assim foi que o tempo passou e aquela família foi mudando e mudando cada vez mais. Os Gomes não mais pareciam uma família do século XXI. À mudança nos gostos e costumes se seguiu uma mudança muito grande no comportamento e até na autoestima daquelas pessoas. Acabaram cortando relações com praticamente todos seus amigos, e até mesmo familiares viam com maus olhos toda aquela “excentricidade”. Dois anos se passaram com a rapidez na qual uma vela se apaga em meio à ventania. E assim, eventualmente, a família Gomes acabou se mudando daquele local. Pouco se soube deles depois disso, alguns vizinhos comentam que foram viver na Europa, em uma propriedade de campo distante, onde muitos ainda mantinham aqueles maneirismos, outros, mais ácidos, se referiam aos “chatos e metidos Gomes”, e afirmavam com certeza que tinham ficado pobres e estavam agora vivendo às custas de um tio que ainda tinha algum dinheiro. A verdade é que a mudança para uma "cultura melhor" talvez não tenha acarretado uma verdadeira melhora nos seus alvos. O próprio conceito de cultura melhor e única já parecia tão ultrapassado quanto o fantasma que o pregava.
            O que se sabe é que a propriedade novamente caiu em desuso. O tempo passava e as pessoas se acostumaram novamente ao aspecto desolado e triste daquela casa. Muitos rumores ainda existiam no bairro sobre sons estranhos vindos de dentro daquelas paredes, gemidos de tristeza e em alguns momentos um ou outro barulho de passos entre o portão e a porta da sala. Algumas crianças até afirmaram terem sido atingidas por pequenas pedrinhas quando tentaram invadir o terreno por curiosidade. Outros afirmavam ver vultos nas janelas, de um homem velho e com barba extremamente branca e encorpada, exatamente como Lorde Wellington aparecia nas fotos. As histórias iam se repetindo de boca em boca, mas o ocorrido mais estranho é o de que em certos domingos, bem por volta da hora do futebol, haviam aqueles que juravam ouvir bem de longe, como se trazido pelo vento lá dos fundos do terreno, um bom pagode embalando as narrações dos jogos do Mengão. É, talvez não tenha sido só a família Gomes que adquiriu novos costumes com aquela convivência tão estranha.

15 de abril de 2014

Foco errado



Muito se discute, afinal, sobre a questão do copo cheio ou vazio ... otimista, pessimista ...

As pessoas tem um foco absolutamente torto da situação ... no fim das contas não interessa se o copo tá meio cheio ou meio vazio ... o que interessa é o que tem dentro dele ...

20 de março de 2014

O Manifesto da Vergonha

             
              Era uma tarde comum de terça-feira. O sol não se decidia se ficava no céu ou deixava espaço para algumas nuvens que passavam manhosas por seu caminho. O homem andava no meio do turbilhão de pessoas pelo calçadão no horário do almoço. Somado ao alvoroço já comum daquele horário o homem notou uma junção gigantesca de pessoas mais a frente. Apesar do pouco tempo que tinha para o almoço a curiosidade venceu a sua habitual racionalidade. Seguiu em frente para ver do que se tratava.
           Um agrupamento de jovens se manifestava. Pelo que notou a princípio parecia se tratar de algo como aumento de passagens de ônibus, ou algo do gênero. Aquilo já parecia comum naquela época. Ficou algum tempo parado ali olhando e pensando na vida. Perdido em lembranças e devaneios. No meio daquela turba avistou um garoto jovem. Devia ter por volta de 18 anos e gritava com força aos quatro ventos palavras de ordem e pedidos por mudança. Parecia trajado da própria ideologia e não tinha medo de demonstrar aquilo.
          O garoto notou aquele homem que parecia meio perdido em meio àquele contexto. Olhando abismado para uma situação que parecia já ser corriqueira. Olhando com olhos que pareciam conter um misto de estranheza e identificação.
                E ali estava aquela dicotomia, pareada pelo tempo e pelo espaço. Um garoto de 18 anos vestindo jeans rasgados, camisa de flanela e cara pintada. Um homem adulto, vestindo terno e gravata, uma pasta de couro e uma coleira invisível no pescoço. E o homem pensava, e lembrava de dias diferentes. Dias em que acreditava mais, vivia mais, pensava mais. O homem sentiu uma semelhança imensa daquele garoto com seus dias de juventude, e assim sendo viu o quanto as coisas haviam mudado. O garoto olhou para o homem com um olhar de esperança, como se aquele homem fosse ali mesmo arrancar a gravata e se juntar à passeata que pensava em todos. Que aquele homem ia esquecer da necessidade criada por ele mesmo de ganhar mais e mais para si, muitas vezes sem nem mesmo trabalhar o suficiente para aquilo.
             E aquele garoto pensava, olhando aquilo, como alguém se deixava levar por aquele caminho? Como alguém podia entregar sua liberdade e sua criatividade? Como alguém podia se vender por algo tão pouco valioso como dinheiro? E nesse momento o homem pensava como aquele garoto podia ter aquela coragem, de não ligar pra absolutamente nada a não ser suas próprias ideias e vontades. E o homem pensava em que momento tudo havia se tornado tão diferente. Aonde em meio ao caminho tinha ficado tudo aquilo que fazia dele, ele mesmo.
              Cruzaram olhar, e um segundo depois a marcha continuou, com o garoto bradando a verdade aos quatro ventos. O homem estancou, pegou sua pasta escorada em sua perna, no chão, e seguiu seu caminho para o almoço. Um era a ideologia em pessoa, o outro um avatar da vergonha e desapontamento.

14 de fevereiro de 2014

Aconteceu Num Sábado a Noite



                Era sábado a noite, um sábado qualquer na cidade que não dormia nunca. O primeiro garoto era negro, nascido pobre, trabalhara desde cedo no que podia, comia o pão que o diabo amassou, não conhecia o pai. O segundo era branco, loiro e de olhos azuis, o pai era um influente empresário.

                O primeiro descia o morro sempre que podia pra ir à praia. Gostava de assistir ao futevôlei na areia, as ondas quebrando na beira do mar, de vez em quando até entrava na água, mas gostava mesmo era da vista daquelas vidas que, sonhava ele, podiam ter sido a sua. O segundo também adorava a praia, ir com os amigos, beber umas cervejas, azarar, surfar de vez em quando.

                O primeiro gostava de desenhar, muitos chamavam pichação, para ele era arte, de rua, sempre a rua. O segundo não gostava, gastava, e era isso. O primeiro não usara drogas nunca, era limpo, mesmo com todas as possibilidades ao redor. O segundo perdia as contas do que já havia feito e visto.

                E veio o sábado a noite, o primeiro sentia fome, e andava pela rua, a mãe não tinha emprego, os irmãos estavam perdidos, por uma razão ou outra, e ele seguia com a arma no bolso da jaqueta de moletom. O segundo voava pelas avenidas no seu carro, um fardo de cervejas adornava o assento do carona. 110km ... 120km ... as luzes riscavam o para brisas como pequenas explosões de êxtase.

                O primeiro gritou, a mulher gritou, e por fim a polícia gritou. O segundo gritava extravasando a futilidade e inutilidade daquela existência. A polícia correu atrás do primeiro, e em um beco sem saída viu o garoto encurralado. Ele levantou as mãos, com calma, e um tornozelo vilão o fez tropeçar. O segundo acelerava cada vez mais o seu carro.

                BANG, o primeiro caía lentamente no calçamento com uma bala no peito. BANG o segundo atingia rapidamente um inocente pedestre em uma faixa de segurança. O primeiro nunca mais desenharia, nem contemplaria o mar calmo e macio. O segundo gozaria da influência do pai e do capital.

                 Um deles era, o outro tinha. E entre o ser e o ter não se desenham tons de cinza. Há uma fissura, quase intransponível. A vida do primeiro era regida por leis básicas e inquebrantáveis, a do segundo era regida apenas pela própria vontade. E nesses sábados a noite, domingos a tarde e segundas pela manhã, muitos outros BANGs eram escutados pela cidade. E através da madrugada o som se espalhava com o vento forte pelas ruas. Carregava a certeza de que mais uma vez a justiça não enxergara o que deveria ter enxergado. Maldito som esse que acabava com razão, palavras e sonhos. BANG, era o que espalhava a notícia de que há algo de muito errado nos nossos valores. BANG, a tristeza agora tinha um som.